Mobilização indígena digital cresceu e se unificou em meio a episódios de violência e cenário de possível reeleição de Bolsonaro
Por: FGV ECMI
Por: FGV ECMI
- Análise mostra como fragmentação de atores alinhados à causa indígena se transforma em união contra o governo, seis meses antes da eleição;
- Papel de lideranças cresce no período e consolida frente digital com protagonismo indígena;
- Demarcação de terras é tema constante em todo o período e pressões contra ações do governo se intensificam em 2022.
Grupos ambientalistas e indígenas formaram frente conjunta na oposição ao governo Bolsonaro durante o mês de abril de 2020, 2021, e 2022. Se antecipando as eleições de 2022, o grupo denunciou casos de violência contra povos indígenas e responsabilizou o governo federal. Esse movimento de oposição também promoveu uma unificação entre os diferentes grupos de oposição, que no início de 2022 já se subdividiam em apenas dois grupos. As lideranças indígenas também conquistaram protagonismo ao longo do triênio, com destaque para a atual ministra Sonia Guajajara.
O debate sobre povos indígenas mobilizado por grupos de oposição ao governo Bolsonaro durante o mês de abril de 2020, 2021 e 2022 foi analisado pela Escola de Comunicação da FGV, que explorou 297,8 mil postagens sobre o tema no Twitter. Esta é a segunda parte do estudo, e analisa os grupos ambientalistas e do movimento indígena que fazem oposição ao governo Bolsonaro, divididos através da clusterização de postagens a partir da interação entre os perfis. As postagens do grupo alinhado ao governo Bolsonaro foram analisadas na primeira parte do estudo: Retórica de “Ameaça estrangeira” justifica atuação militarista no debate sobre indígena durante os últimos anos de governo Bolsonaro.
Grupo de oposição aliada aos indígenas se torna mais coeso e
intensifica oposição ao governo durante ano eleitoral
A oposição ao governo Bolsonaro aliado aos indígenas se uniu a partir de diferentes frentes ao longo do período analisado. Em 2020, em termos de número de clusters, essa oposição era mais fragmentada do que em 2021 e 2022, o que indica uma aglutinação gradual e orgânica de grupos distintos em prol do fortalecimento do campo político avesso a uma possível reeleição de Bolsonaro.
Mapa de interações do debate sobre indígenas no Twitter
Período: de 1° a 30 de abril de 2020, 2021 e 2022
Fonte: Twitter | Elaboração: Escola de Comunicação, Mídia e Informação da FGV
No âmbito do debate, os principais grupos de oposição ao governo foram os conjuntos formados por lideranças indígenas, ambientalistas e lideranças políticas de esquerda. Em todos os anos analisados, a somatória de perfis e interações dos grupos oposicionistas foi significativamente superior aos clusters bolsonaristas. Denúncias de descaso do governo em relação a indígenas no contexto da Covid-19, críticas ao desmonte de instituições ambientais e registros de crimes violentos por parte de garimpeiros ilegais foram alguns dos temas mais abordados por esses atores. A tentativa de incriminação da atual ministra dos Povos Originários, Sonia Guajajara, em 2021, por conta de uma websérie que denunciava a situação de indígenas na pandemia, teve forte poder de mobilização, inclusive por parte do atual presidente Lula, o que pode ter contribuído para uma maior aproximação desses grupos no ano seguinte.
2020 - 67,5% de perfis | 74,8% de interações - Total de 52,5 mil postagens
Os conjuntos que formam o campo de oposição ao governo Bolsonaro aliado aos indígenas tiveram alcance semelhante em termos de números de perfis e interações. O impacto da Covid-19 nas populações indígenas dominou a discussão em todos os grupos. Com 18,8% dos perfis e 16% das interações, o cluster formado por atores políticos indígenas, como @alice_pataxo e @indiadeiphone, deu ênfase à falta de suporte do governo aos povos originários, com menções frequentes à ex-ministra Damares Alves, e denúncias de expedições missionárias evangélicas ilegais em territórios indígenas. No cluster de esquerda, que somou 18,1% dos perfis e 21,9% das interações, foi dada ênfase à ausência de membros do Ibama e da Funai no Conselho da Amazônia, que teve 19 militares nomeados pelo ex-vice-presidente Hamilton Mourão. Também circularam denúncias de que a Funai teria desviado recursos destinados ao auxílio de indígenas na pandemia. No conjunto formado por ambientalistas, que concentrou 16,2% dos perfis e 24,3% das interações, foi dado destaque a cartas de indígenas dirigidas ao então ministro da Justiça, Sergio Moro, sobre o assédio de missionários evangélicos em territórios isolados. Ainda tiveram alta circulação denúncias de @SoniaGuajajara sobre assassinatos de lideranças indígenas e a subnotificação de mortes em decorrência da Covid-19. Com a abordagem desses mesmos tópicos, perfis como @MarinaSilva e @IlonaSzaboC compuseram o cluster de atores políticos progressistas, que somou 9,6% dos perfis e 8,3% das interações. Em menor número, o cluster com perfis da mídia tradicional, como @Estadao e @g1, tiveram destaque ao veicular notícias de denúncias contra o governo, com 4,8% dos perfis e 4,3% das interações, o agrupamento foi considerado parte do grupo de oposição pela aproximação no mapa de interações, justificada pelo volume de retuítes de postagens da mídia feitas pelos grupos de oposição. No entanto, as postagens dão ênfase às consequências da Covid-19 para os indígenas e desvios de verba para auxílio desta população, sem oposição direta ao governo federal.
2021 - 69,3% de perfis | 76,3% de interações - Total de 83,0 mil postagens
A configuração de clusters que formavam a oposição aliada no debate sobre indígenas foi semelhante à de 2020. No entanto, foi registrada uma variação de alcance entre eles, com notório crescimento do grupo ambientalista, que somou 21,3% dos perfis e 26,8% das interações totais. @SoniaGuajajara, @ApibOficial e @JoeniaWapichana foram os perfis de maior destaque do grupo. Mais do que em relação a outros atores do governo, foi central a oposição ao ex-ministro Ricardo Salles, a quem os perfis mencionados atribuíram o aumento do desmatamento, retrocessos na política ambiental e invasões de garimpeiros em territórios indígenas. Na esquerda, que reuniu 20,9% dos perfis e 24,2% das interações, o principal assunto foi uma intimação da Polícia Federal contra Guajajara por conta da produção de uma websérie sobre a situação de indígenas na pandemia. Houve uma forte mobilização a favor da ativista por parte de figuras como @LulaOficial. No grupo de atores políticos indígenas, que reuniu 15,8% dos perfis e 14,9% de interações, foram ressaltadas críticas diretas a Salles. Perfis como @alice_pataxo e @Karibuxi mencionaram, por exemplo, a atuação do ex-ministro na PL 510 da Grilagem e no suposto desmantelamento da Funai. Com menor alcance, houve conjuntos formados por ONGs e comunicadores, com 6,1% de perfis e 6% de interações, e atores políticos progressistas, com 5,2% de perfis e 4,4% de interações. Enquanto o primeiro se concentrou em repercutir o dia 19 de abril com reflexões sociais e a comentar produtos midiáticos sobre indígenas, o segundo se manifestou frontalmente contra Salles e comparou a condução da agenda ambientalista e indigenista na gestão Bolsonaro com governos anteriores.
2022 - 79,2% de perfis | 83,3% de interações - Total de 162,2 mil postagens
No ano das eleições presidenciais, houve uma perceptível condensação dos clusters da oposição ao governo Bolsonaro aliado aos indígenas em dois grupos: atores políticos indígenas e ambientalistas. Em ambos os clusters, denúncias de casos de violência física e sexual contra crianças Yanomamis praticadas por garimpeiros ilegais mobilizaram a discussão de maneira majoritária. No conjunto formado por atores políticos indígenas, que reuniu 48,7% dos perfis e 36,8% das interações totais, perfis como @PataxoThyara e @NayaTupinamba enfatizaram o caso de estupro e assassinato de uma menina de 12 anos. O episódio foi classificado como produto de uma suposta postura omissa e criminosa do governo em relação aos indígenas, especialmente em decorrência do avanço do garimpo ilegal. No conjunto de ambientalistas, que somou 30,5% de perfis e 46,5% de interações, denúncias sobre este e outros episódios de violência contra indígenas foram adensadas por perfis como @SoniaGuajajara, @andretrig e @fiscaldoibama. Foram mencionados, por exemplo, incêndios criminosos em aldeias e ofertas de troca de alimentos por sexo.
Perfis de lideranças indígenas ganham relevância no debate em 2022, ocupando espaço entre os mais influentes do período
Perfis de lideranças indígenas exibiram crescente visibilidade no triênio, impulsionadas pela denúncia de casos de violência contra povos indígenas e críticas ao governo, por suposta omissão diante dos casos. Nesse sentido, a atual ministra Sonia Guajajara também se destaca, inclusive pela perspectiva crítica, conforme estudo anterior aponta. Atores políticos que hoje compõem o governo Lula também se aglutinaram em torno da pauta indígena.
Capital digital do debate sobre indígenas no Twitter
Período: de 1° a 30 de abril de 2020, 2021 e 2022
Fonte: Twitter | Elaboração: Escola de Comunicação, Mídia e Informação da FGV
Na oposição ao governo Bolsonaro, tiveram alta influência perfis de lideranças indígenas, atores políticos, instituições ambientais e jornalistas independentes, além de veículos de mídia tradicional e progressistas. Esta tendência se repetiu em todo o período analisado, com o protagonismo de figuras como o jornalista @andretrig, o deputado federal @GuilhermeBoulos e as lideranças indígenas @indiadeiphone e @PataxoThyara, além do atual presidente @LulaOficial e das atuais ministras @SoniaGuajajara e @MarinaSilva.
Ao longo dos anos abrangidos pela análise, destacou-se a atuação de perfis segmentados de caráter colaborativo, sem vinculação institucional, que publicaram denúncias a respeito do governo anterior de maneira sistemática, especialmente @ofiscaldoibama e @BiodiversidadeB. Com alta articulação no debate, esses perfis tenderam a focalizar em suas publicações o desmonte do Ibama e da Funai e o crescimento do garimpo e do desmatamento ilegais em territórios indígenas.
Lideranças indígenas, algumas dos quais já ligadas ou que viriam a ser ligadas à política institucional, representaram uma fatia significativa dos protagonistas do debate em todo o período analisado. Perfis como @indiadeiphone, @alice_pataxo e @SoniaGuajajara obtiveram engajamento relevante na discussão. Observou-se que essas lideranças reagiram sistematicamente ao desenvolvimento das agendas do governo que tinham impacto direto sobre os indígenas e o meio ambiente. Denúncias de desmontes institucionais deliberados e de crimes, como estupros, assassinatos e incêndios criminosos em aldeias, foram recorrentes em suas publicações.
Debate sobre demarcação de terras aparece em todos os anos
analisados; 2022 é marcado por ação de mobilização digital
Os termos analisados estão comumente associados a denúncias de violências ou organização de movimentos sociais. No grupo, há também a presença de um debate sobre a demarcação de terras indígenas, não vista na base do governo Bolsonaro. O termo “indígena” e “índio” também é alvo de disputa no grupo.
Similaridade entre as palavras no debate sobre indígenas no Twitter
Período: de 1° a 30 de abril de 2020, 2021 e 2022
Fonte:Twitter | Elaboração: Escola de Comunicação, Mídia e Informação da FGV
- A análise contextualizada de palavras aponta para a preferência pela denominação a “indígena” ou “indígenas”. As palavras são frequentemente utilizadas junto a “povos” e superam em muito a utilização de “índio” ou “índios”. O termo “índio” é frequentemente mobilizado em contexto de crítica, sendo associado a vocábulos como “termo”, “referir”, “nomenclatura” e “pejorativo”. Por vezes, a designação é utilizada em referência à Fundação Nacional do Índio, a Funai;
- Ao longo do triênio, as palavras mais frequentemente associadas à “indígena” e variações destacam ações negativamente direcionadas a essas populações e, em alguns casos, reforçam componentes de atuação ativa em função de causas relacionadas aos povos;
- Em 2020 e 2021, o debate sobre saúde indígena no contexto pandêmico se destaca e justifica a associação do termo com palavras como “afetadas”, “impactando”, “agravamento”, “extintos” e “varíola”, em forte tom crítico ao governo da época. Em 2020, é o questionamento dos dados oficiais da Covid-10 que explica o uso frequente de “divulgados” e “informados”;
- Já em 2022, a denúncia de violências cometidas contra os povos indígenas e atribuídas pelos grupos ao campo político bolsonarista fica em marcada evidência. Nesse sentido, termos como “matem”, “destrua”, “nazifascismo” e “violentados” se destacam, enquanto o adjetivo “nocivo” é utilizado para qualificar o Projeto de Lei 191/2020;
- De forma geral, a referência à violência e ao contexto de trâmites envolvendo terras indígenas é frequente ao longo de todo o triênio e aparece pela forte associação com “ocupadas”, mas também pela menção a “reservada”, “retomadas” e “demarcada”;
- Ações realizadas em função de causas relacionadas aos povos indígenas também foram reiteradas nos três anos analisados. Vocábulos que designam componentes ativos e não passivos, como “discutem”, aparecem em 2020 enquanto “protestar” e “descolonizar” são mobilizados em menção às atividades do dia 19 de abril, em 2021. Por sua vez, o ano eleitoral de 2022 é marcado pela intersecção entre esses componentes e mobilizações digitais, o que é indicado pelo uso de “compartilha”, “twittaço” e “arrecadação”;