Debate sobre pessoas trans é protagonizado por grupos com perfil ideológico de extrema direita no Facebook entre 2019 e 2023

Por: Democracy Reporting International e FGV Direito Rio

 

Por: Democracy Reporting International e FGV Direito Rio

 

  • Dos grupos públicos do Facebook que se destacaram em debates sobre pessoas trans, a grande maioria (14 de 15) se alinhava à extrema direita ligada ao ex-presidente Jair Bolsonaro e apenas um à esquerda;
  • Postagens específicas sobre “ideologia de gênero” tiveram um pico em 2019, tendo reduzido em quantidade ao longo dos últimos anos; por outro lado, associações da expressão com pessoas trans, assim como eventos em que esta população é colocada em evidência, continuam gerando reações negativas e hostis online;
  • Pautas políticas de pessoas trans e “a esquerda” são comumente relacionadas nessas publicações, demarcando a defesa da identidade de gênero como algo negativo, ao lado de temas como aborto e feminismo;
  • O sentimento atrelado às postagens encontradas em grupos com viés político de extrema direita é predominantemente negativo. Os temas "Ideologia de gênero" e "Banheiros neutros quanto a gênero" destacam-se neste padrão, com mensagens que interseccionam desinformação sobre direitos de pessoas trans e discurso de ódio.



O debate no Facebook sobre direitos, reivindicações políticas e vivências de pessoas trans tem sido permeado pela tematização de assuntos como: “ideologia de gênero”, religião, visibilidade trans, apoio e acolhimento, banheiros neutros quanto a gênero e linguagem não-binária. Ao discutir esses tópicos, participantes de grupos públicos com perfil predominantemente de extrema direita na rede social costumam utilizar palavras lidas como negativas, com prevalência de postagens antitrans. É o que mostra levantamento da Democracy Reporting International e do Programa de Diversidade e Inclusão da FGV Direito Rio.

 

Metodologia

 

Este relatório analisa como os debates sobre transgeneridade e direitos de pessoas trans têm se construído no Facebook ao longo dos últimos anos. Com uso de métodos de análise quantitativa e qualitativa, observamos um conjunto de publicações feitas em grupos públicos da rede social no período entre 1º de janeiro de 2019 e 30 de abril de 2023. Foram coletadas 300.000 publicações por mês para o período de análise, ordenadas de acordo com o número total de interações, do maior para o menor, independente do grupo em que foram compartilhadas. 

A partir de uma base de, aproximadamente, 16,1 milhões de postagens, selecionamos um subconjunto de dados para análise. Para isso, filtramos as postagens de acordo com uma lista, criada pelos autores e autoras deste relatório, com termos e expressões relacionadas com as principais discussões protagonizadas por e relacionadas a pessoas trans no Brasil. No total, foram analisadas 4.122 publicações que se adequaram aos critérios estabelecidos. 

O objetivo central foi compreender como temas afeitos a pessoas trans foram debatidos naqueles espaços e, paralelamente, verificar possíveis associações entre os assuntos pautados e eventos marcantes repercutidos pela imprensa brasileira. Para além disso, identificamos: (I) Quem protagoniza o debate — quais grupos predominaram a discussão e seu perfil político;  (II) O que é dito — os tópicos mais discutidos e a média de postagens e reações associadas a cada um deles, para entender sua repercussão online; e (III) Como o debate se desenvolve — o sentimento atrelado às postagens, a fim de entender se os tópicos foram debatidos sob uma perspectiva negativa, positiva ou neutra. 

Para a abordagem quantitativa, portanto, utilizamos técnica de modelagem de tópicos para identificar os principais temas discutidos; técnica de análise de sentimento para identificar a polaridade emocional das postagens; e métrica de engajamento para identificar os grupos que mais tiveram postagens em relação ao tema, e quais temas receberam o maior número de interações. Qualitativamente, relacionamos os temas mapeados na seção quantitativa com alguns dos principais eventos do campo político, jurídico, cultural e social envolvendo a população trans no Brasil ao longo do período da análise.

 

Quem protagoniza o debate: Mapeamento dos principais grupos que tematizam transgeneridade e direitos de pessoas trans no Facebook

 

Os grupos públicos de Facebook nos quais o debate envolvendo pessoas trans foi mais acentuado foram majoritariamente alinhados à extrema direita associada ao ex-presidente Jair Bolsonaro, como apontam já de início a maior parte dos títulos dos grupos em destaque (Tabela 1). Na tabela abaixo, identificamos a quantidade de membros, o número de postagens sobre o tema mapeado para este relatório, o espectro político e o tópico mais discutido em cada grupo sobre a população trans.



Tabela 1: Grupos públicos do Facebook com maior número de postagens que tematizam transgeneridade e direitos de pessoas trans

Período: de 1° de janeiro 2019 a 30 de abril de 2023

tabela

Fonte: Facebook | Elaboração: Democracy Reporting International (DRI) 

  • Em muitos casos, mensagens idênticas foram identificadas em múltiplos grupos, o que pode sugerir a ocorrência de bots ou de usuários engajados em disseminar conteúdos de ódio e desinformação em massa. A maior parte das mensagens são marcadas por ataques, ofensas e inverdades sobre pessoas LGBTQIA+ e tendem a reivindicar uma polarização política entre esquerda e direita, sendo mobilizadas, portanto, a partir de motivações político-partidárias;
  • Os grupos “Grupo do SOLDADO DE AÇO RESISTÊNCIA PATRIÓTICA”, “GRUPO OLAVO DE CARVALHO”, “BOLSONARO O MELHOR PRESIDENTE”, “Aliança pelo Brasil 22”, “DIREITA RACIONAL” e “FORÇABRASIL” são alguns dos que concentraram o maior número de postagens no âmbito da discussão sobre pessoas trans. A partir de seus próprios títulos, tendem a reforçar uma associação direta com o ex-presidente e, portanto, o seu caráter de articulação político-partidária. As publicações analisadas acionam a ideia de pânico moral como forma de criminalizar e desumanizar a população trans e, em um nível mais amplo, “a esquerda”, bem como os demais opositores de Bolsonaro. 

 

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Fonte: Facebook | Elaboração: Programa de Diversidade e Inclusão (FGV Direito Rio)

  • O grupo “edita pra mim”, que tem por finalidade declarada atuar colaborativamente na edição de imagens — algo  supostamente alheio à discussão sobre pessoas trans —, se destacou entre os demais: ele possui o maior número de postagens sobre essa população e, na ampla maioria das vezes, com teor negativo. O grupo, cujo conteúdo precisa ser autorizado pelos administrados para ser efetivamente publicado, recebeu com frequência postagens conservadoras e transfóbicas ao longo do período analisado, em geral contra “a esquerda” e a ideia de “ideologia de gênero”;
  • Nessas publicações, foi recorrente a tentativa de criminalização de pessoas LGBTQIA+ e de esquerda, a exemplo da falsa associação entre esses indivíduos e práticas de pedofilia. Ao verificar a razão do desencontro entre o objetivo manifesto do grupo (edição de imagens) e esse tipo de conteúdo, foi identificado que, anteriormente, ele sinalizava alinhamento com o ex-Presidente Jair Bolsonaro, tendo recebido, entre 2018 e 2023, nomes como “Equipe do Bolsonaro de Plantão”, “Mito 22” e “Direita Brasil”. Apenas em março de 2023 o grupo passou a se chamar “edita pra mim”.
  • A manutenção de conteúdo desinformativo e de ódio em um grupo com um alto número de seguidores que, em teoria, atualmente buscam por um outro tipo de conteúdo, pode ser lida como uma estratégia para atrair mais pessoas para um determinado posicionamento ideológico com fins político-partidários. No entanto, essa leitura trata-se de uma hipótese que precisa ser investigada mais a fundo para verificar sua plausibilidade;
  • Entre os grupos em destaque, o único a se diferenciar em termos de espectro político dos demais foi “LGBT Brasil ( perfil 2 )”, voltado para o público engajado na pauta LGBTQIA+, com forte viés antibolsonarista. De acordo com a descrição do grupo, seu objetivo consiste em “promover políticas públicas para o desenvolvimento da comunidade LGBT”. Além de fazerem oposição a Bolsonaro, os posts observados se concentravam em denúncias de episódios de violência contra pessoas LGBTQIA+, especialmente casos de homicídios de pessoas trans. De modo lateral, também houve postagens que celebravam conquistas de indivíduos LGBTQIA+ e enfocavam os aspectos da militância desses indivíduos, a exemplo da divulgação de eventos e ações com esse propósito.

 

O que é dito: Principais tópicos de postagens tematizando transgeneridade e direitos de pessoas trans no Facebook

 

O gráfico abaixo mostra, em evolução temporal, quais foram os principais tópicos envolvendo pessoas trans abordados por postagens feitas em grupos públicos do Facebook. A partir da mensuração da quantidade de publicações associadas a cada um dos temas por ano, pelo período de janeiro de 2019 a abril de 2023, é possível verificar seus desenvolvimentos de forma comparativa. 

 

Gráfico 1: Distribuição de tópicos mais discutidos

Período: de 1° de janeiro 2019 a 30 de abril de 2023

gráfico de linhas

Fonte: Facebook | Elaboração: Democracy Reporting International (DRI) 

Enquanto alguns não apresentam oscilações significativas (e.g. Redes de Apoio e Acolhimento), outros são marcados por picos que podem ser associados a eventos amplamente noticiados pela mídia brasileira. Neste último caso, por exemplo, estão incluídas a reportagem do Dr. Dráuzio Varella com uma mulher trans encarcerada, em março de 2020 (Visibilidade Trans e suas repercussões), e a posse do ex-presidente Jair Bolsonaro (Ideologia de gênero e Mobilização política antitrans), em janeiro do mesmo ano.

 

Ideologia de gênero e Mobilização política antitrans

 

  • Em termos quantitativos, os três temas com maior número de postagens associadas são “Visibilidade Trans e suas repercussões” (914), “Ideologia de gênero” (645) e “Mobilização política antitrans” (611). Enquanto o primeiro deles oscilou de forma irregular ao longo do período de análise, tendo picos e quedas em diferentes momentos, os dois últimos tiveram seu ápice em 2019 e foram perdendo força com o passar do tempo, sugerindo que o início do governo Bolsonaro influenciou uma crescente de manifestações hostis em relação a pessoas trans;
  • Enquanto as postagens reunidas pelo tema “Ideologia de gênero” referem-se a diferentes usos da expressão para criticar o avanço de políticas em prol da população LGBTQIA+ (e.g. educação em diversidade sexual e de gênero e linguagem não-binária), aquelas que compõem o grupo “Mobilização política antitrans” fazem referência expressa à atuação de representantes da extrema direita no Brasil contra a mesma população, com destaque para postagens que mencionam o ex-presidente Jair Bolsonaro;
  • Nesse sentido, os principais assuntos relacionados a estes temas, em janeiro de 2019, são o discurso de posse de Bolsonaro, no qual ele expressamente indicou o objetivo de “combater a ideologia de gênero”; postagens que o apresentam como alguém “honesto” e que não ameaçaria minorias; e a manifestação da ex-ministra Damares Alves reforçando papéis de gênero, quando disse que “meninos vestem azul” e “meninas vestem rosa”. 

 

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Fonte: Facebook | Elaboração: Programa de Diversidade e Inclusão (FGV Direito Rio)

Nesse conjunto de postagens, alega-se que Bolsonaro e seus aliados irão combater a corrupção,  “limpar” o Brasil de “bandidos travestidos de políticos” — normalmente em referência a figuras políticas associadas ao espectro político de esquerda —, e acabar com a “ideologia de gênero”. Essa última expressão aparece, ainda, associada a palavras como “feminismo” e “aborto”, indicando uma leitura comum (e negativa) de pautas progressistas de interesse das mulheres. 

 

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Fonte: Facebook | Elaboração: Programa de Diversidade e Inclusão (FGV Direito Rio)

 

Visibilidade Trans e suas repercussões

 

  • As publicações reunidas neste tópico referem-se tanto à repercussão de episódios em que pessoas trans foram colocadas em evidência em veículos da mídia brasileira quanto à sua representação em mídias de entretenimento. Se, por um lado, personagens trans em séries e filmes, por exemplo, são comumente celebradas em alguns dos grupos que analisamos, por outro, mulheres e homens trans que ocupam posições de protagonismo nos veículos da imprensa são comumente expostos a comentários negativos e/ou transfóbicos, que nem sempre estão relacionados com o conteúdo central do evento noticiado. 
  • O primeiro pico, conforme visto no Gráfico 1, acontece no primeiro semestre de 2020. Naquele momento, foi ao ar reportagem do Fantástico com o Dr. Dráuzio Varella em que ele apresentava a situação de mulheres trans e travestis em presídios brasileiros e as entrevistava. O que motivou, mais especificamente, as manifestações no Facebook foi o abraço que Varella deu em Suzy, uma das mulheres que participou como interlocutora na matéria;
  • Os comentários sobre o episódio foram majoritariamente negativos, com menções ao crime pelo qual Suzy havia sido condenada — para repudiar o gesto afetuoso do médico — e críticas à Globo, emissora que transmitiu a reportagem (e.g. com a utilização da hashtag #globolixo). Em poucos casos, os comentários críticos à matéria também a associavam à “esquerda”, ou a referenciavam com tom positivo e de solidariedade. Para além disso, houve desinformação sobre o caso, em postagem que afirmava que a apresentadora de televisão Fátima Bernardes reformaria a cela de Suzy na prisão — replicada algumas vezes e posteriormente marcada, por verificadores de fatos independentes, como informação falsa.

 

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Fonte: Facebook | Elaboração: Programa de Diversidade e Inclusão (FGV Direito Rio)

  • Embora não apareça no gráfico como segundo pico, uma vez que a repercussão não foi tão alta quanto a do episódio descrito acima, outro conjunto de publicações se destacou no tópico: trata-se do boicote iniciado contra a Natura por anunciar Thammy Miranda, um homem trans, como um dos participantes de sua campanha para o Dia dos Pais; 
  • Em julho de 2020, uma série de postagens repercutiu a hashtag #naturanão para criticar a escolha da empresa de cosméticos, afirmando que seria contra os valores da “família brasileira” e mais uma “lacração esquerdopata”. Na nossa amostra, uma postagem de apoio feita por Toni Reis, Presidente da Aliança LGBTI+, parabeniza a Natura e defende a participação de Thammy na campanha — a publicação somou pelo menos 760 interações; 
  • A última curva crescente do tema, em março de 2022, se deve à participação de Linn da Quebrada na edição do Big Brother Brasil (BBB) daquele ano. Os comentários dividiram-se entre demonstrações de apoio à artista, com a indicação de que o programa poderia ter sua primeira mulher transexual campeã, e críticas, alegando que Linn estaria usando sua transgeneridade como vantagem, e sugerindo que o fato de ela ser uma mulher trans seria o único motivo para torná-la vencedora do reality; 
  • Linn também foi comparada com outras mulheres trans (e.g. Rogéria), para indicar que ela ainda teria “muito o que aprender”, e foi chamada de “ingrata”, “mentirosa” e “desumana” ao participar de embates com outros participantes do BBB. Nessas postagens, a artista foi comumente referida como travesti, ainda que no gênero feminino; 
  • De outro lado, as publicações sobre representatividade em mídias de entretenimento celebram a presença de personagens LGBTQIA+ e, mais especificamente, de pessoas trans em séries (e.g. Heartstopper, Itaewon Class, Secret Crush on You), novelas, filmes e quadrinhos. Estúdios aos quais essas personagens estão vinculadas, como Disney, Marvel e Dreamworks, são, explícita ou implicitamente, mencionados. Além disso, também há menção à presença de personagens trans e trans não-binárias em jogos; 
  • A comparação entre os grupos sugere que estratégias de visibilidade em veículos com perfil temporal mais perene, como costuma ser o caso das mídias mencionadas, tem causado impacto mais positivo quando em comparação com outros eventos em que a transgeneridade é pontualmente colocada em evidência. Por outro lado, é importante considerar que, nos casos que mencionamos como picos, a alta repercussão pode ter sido decorrência dos meios pelos quais os episódios foram circulados (dois deles na Globo, uma das maiores emissoras de televisão no Brasil).

 

Redes de Apoio e Acolhimento 

 

  • Com pouca variação de postagens ao longo do tempo, o tema “Redes de Apoio e Acolhimento” agrega manifestações feitas predominantemente por pessoas trans, em grupos nos quais o objetivo é fomentar a sociabilidade, oferecer suporte e trocar experiências comuns. Exemplos disto são publicações com dicas de maquiagem, relatos sobre saúde física e registros do processo de transição;
  • Há, ainda, um grande número de postagens feitas por mulheres trans buscando relacionamentos amorosos, como por exemplo: “Boa tarde. Sou uma mulher Trans algum homem afim de relacionamento sério”. Essas publicações são comumente acompanhadas de fotos dessas mulheres e dados para contato, sugerindo que ali seriam espaços seguros para buscar potenciais parceiros;
  • Nesse conjunto, existem mais publicações sobre homens trans, abordando temas específicos como transmasculinidades e mencionando figuras influentes do movimento de pessoas trans, como João W. Nery, que faleceu em 2018. Esse parece ser um ambiente marcado por tom solidário e de companheirismo, em que casos de violência são noticiados com o objetivo aparente de gerar sensibilização, mobilização e/ou buscar por ajuda. 

 

Religião e identidade/expressão de gênero

 

  • Aproximadamente 29% das postagens incluídas nesse tópico se referem a relatos de pessoas que alegam ser “ex-travestis”, “ex-drags”, ou “ex-homossexuais”. Feitas em grupos com perfil religioso, as manifestações adotam tom de “salvação” em relação à transgeneridade, que é, por sua vez, recorrentemente associada a criminalidade, drogas e prostituição. 
  • Normalmente feitos em primeira pessoa, os relatos indicam que Deus, Jesus, ou a Igreja foram centrais para o “milagre” vivenciado. As postagens indicam, ainda, sistemas de apoio aos quais outras pessoas em situações semelhantes poderiam recorrer, sugerindo (como no caso abaixo), que a transgeneridade seria algo a ser superado. 

 

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Fonte: Facebook | Elaboração: Programa de Diversidade e Inclusão (FGV Direito Rio)

  • Publicações mais abrangentes associando pessoas LGBTQIA+, em geral, e pessoas trans, em específico, com narrativas de demonização também são comuns. Nesse sentido, é repreendida a possibilidade de que líderes religiosos estejam associados a pautas como “ideologia de gênero” e “aborto”, devendo a Igreja rechaçá-las. 
  • Em agosto de 2020, pelo menos treze publicações com o texto “Pastora trans prega que Deus é travesti e gera polêmica na internet; veja o vídeo” foram compartilhadas. Contudo, nenhuma das URLs que direcionam ao vídeo continua disponível, o que sugere a reprodução de conteúdo falso. 
  • Por outro lado, algumas publicações adotam tom positivo em relação às intersecções entre gênero e espiritualidade. É o caso daquelas sobre aspectos das religiões de matriz africana — principalmente no que se refere à leitura da masculinidade e feminilidade de algumas de suas entidades. Nesse sentido, também identificamos manifestações que perguntam e/ou orientam sobre o acolhimento de pessoas trans nos terreiros.  

 

Banheiros neutros quanto a gênero e Linguagem não-binária

 

  • Em nossa amostra, os dois últimos temas não apresentam número significativo de postagens, nem oscilações relevantes ao longo do período analisado. Embora estejam relacionados com temas recorrentes dos últimos debates sociais envolvendo pessoas trans, as manifestações que coletamos nos grupos do Facebook não refletem, a princípio, a mesma predominância. 
  • Referido na maioria das publicações como “banheiro unissex”, os espaços sanitários inclusivos para pessoas trans são lidos como algo negativo. As narrativas são explicitamente transfóbicas, direcionadas a mulheres trans, alegando que sua presença em determinados espaços aumentaria casos de assédio e exporia outras mulheres aos seus supostos órgãos genitais masculinos.
  • Algumas das alegações, seguindo a tendência identificada nos outros tópicos, também fazem associações com a esquerda e com a “ideologia de gênero”, mencionando, ainda, o repúdio à criação desses banheiros em escolas. Na descrição de um vídeo compartilhado, se afirma: “Numa escola, travesti que usou banheiro feminino, (sic) agride mulher que discordou.”
  • Pelo menos dois casos com repercussão na mídia também foram mencionados: o do “banheiro multigênero” de uma unidade do McDonald’s em São Paulo; e o da fala transfóbica do ex-deputado estadual Douglas Garcia (à época, filiado ao PSL), ao dizer, no plenário da ALESP, que “Se um homem que se acha mulher entrar no banheiro em que estiver minha mãe ou minha irmã, tiro o homem de lá a tapa e depois chamo a polícia”.
  • Por fim, ainda que não tenha uma quantidade substantiva de postagens (92, em um universo de mais de 4.000), o tema “Linguagem não-binária” cresceu entre 2019 e 2021, com um leve pico neste último ano. Na nossa amostra, contudo, não identificamos nenhum evento específico que tenha elevado o número de menções (como nos outros casos), sendo o principal assunto dentro do tema o uso de pronomes neutros.

 

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Fonte: Facebook | Elaboração: Programa de Diversidade e Inclusão (FGV Direito Rio)

 

  • A maioria das postagens tem tom jocoso e crítico, zombando das alterações que a linguagem não-binária propõe em relação à gramática da língua portuguesa. Há poucas menções a tópicos específicos, como, por exemplo, o questionamento sobre a necessidade de usar pronomes neutros em redações do ENEM. Uma das postagens que mais se repete, aparecendo 6 vezes reproduz um texto de uma pessoa que se apresenta como professora de português afirma que o “português não aceita gênero neutro”.

 

Média de postagens e reações associadas aos tópicos mais discutidos 

 

O gráfico abaixo mostra a média de postagens associadas a cada um dos tópicos que identificamos para o período de análise, assim como a média de reações atreladas a eles. Reações são referentes à quantidade de likes (incluindo reações como “amei”, “força”, “uau”, “haha”, “triste” e “grr”), além de comentários e compartilhamentos. Para calcular os valores, somamos as reações, por tópico, que cada postagem recebeu e dividimos pelo número total de postagens daquele tópico.  

 

Gráfico 2: Média de postagens e reações por tópico

Período: de 1° de janeiro 2019 a 30 de abril de 2023

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Fonte: Facebook | Elaboração: Democracy Reporting International (DRI)

 

  • Embora “Ideologia de gênero”, “Mobilização política antitrans” e “Visibilidade Trans e suas repercussões” tenham sido os tópicos com mais postagens, é possível notar que apenas os dois primeiros desencadearam um número significativo de reações. Em relação à “ideologia de gênero”, o dado converge com estudos que identificam o uso da expressão como “rótulo-slogan” contra o avanço de diferentes mobilizações políticas dos movimentos LGBTQIA+ e feministas, e que apontam para a reunião de diferentes “empreendedores morais” que impulsionam o seu uso como dispositivo de pânico;
  • No que se refere à “Visibilidade Trans e suas repercussões”, o número de reações está associado tanto com os efeitos negativos narrados anteriormente, em razão da entrevista de Drauzio Varella com Suzy, a participação de Linn no BBB e a campanha de Dia dos Pais da Natura, quanto às reações positivas decorrentes da representação de pessoas trans em mídias de entretenimento, com tom positivo e de celebração. 
  • Do outro lado, tópicos como “Linguagem não-binária” e “Banheiros neutros quanto a gênero", apesar de uma média relativamente baixa de postagens associadas, tiveram quantidade considerável de reações. Em sua maioria, as postagens agregaram reações negativas — com tons de zombaria, principalmente em relação ao uso de pronomes neutros.
  • No geral, é possível notar que as maiores médias de reações pertencem a tópicos cujo conteúdo é hostil e violento em relação a pessoas trans, sugerindo que, em nossa análise, as postagens que mobilizam sentimentos negativos geram maior engajamento online. Importante destacar, ainda, que a desinformação também atravessa esses tópicos, seja em relação ao uso indiscriminado do termo “ideologia de gênero” para reafirmar estereótipos e pautas nunca defendidas pela população LGBTQIA+, seja para dizer que a transgeneridade é algo a ser “corrigido”, ou que a criação de banheiros neutros quanto a gênero é uma porta para o abuso sexual. 

 

Como o debate se desenvolve: Análise de sentimento das postagens feitas por grupos tematizando transgeneridade e direitos de pessoas trans no Facebook

A análise de sentimento é uma técnica de processamento de linguagem natural que tem como objetivo identificar a polaridade emocional em um texto, geralmente classificando-o como positivo, negativo ou neutro. Utilizando um modelo pré-treinado para análise de sentimento, analisamos as postagens que compõem nosso corpus de análise para entender o sentimento atrelado a elas. O gráfico abaixo mostra a porcentagem de postagens consideradas negativas, positivas ou neutras dos 15 grupos com maior número de publicações em nossa amostra.



Gráfico 3: Sentimento das postagens em grupos públicos do Facebook

Período: de 1° de janeiro 2019 a 30 de abril de 2023

gráfico de barras

Fonte: Facebook | Elaboração: Democracy Reporting International (DRI) 

  • O padrão identificado a partir da classificação de sentimento sugere que as discussões sobre direitos, reivindicações políticas e vivências de pessoas trans estão reiteradamente associadas a assuntos, termos e formulações lidos como negativos na grande maioria dos grupos.
  • Com exceção do grupo “edita para mim” – que não se apresenta atualmente com o objetivo de abordar temas da política –, todos os grupos com mais de 60% de suas mensagens lidas como negativas são grupos declaradamente políticos, com muitos fazendo referência a alguma figura política, como o ex-presidente Jair Bolsonaro e o atual senador Sergio Moro (União Brasil). O grupo “edita para mim”, por sua vez, também chama atenção pela alta porcentagem de mensagens lidas como negativas (65%).  Como já analisado neste relatório, esses grupos estão alinhados a uma narrativa conservadora e transfóbica. 
  • As mensagens encontradas nestes grupos, como já analisado, são referentes às temáticas de “Ideologia de gênero” e “Mobilização política antitrans”. As postagens categorizadas como negativas, muitas vezes, utilizam linguajar vulgar e termos pejorativos para se referir a pessoas trans e propagam perspectivas conservadoras muitas vezes defendidos pelas figuras políticas referidas nos grupos. 
  • O grupo “LGBT Brasil (perfil 2)”, apesar de declarar ser um grupo a favor dos direitos de pessoas trans, tem algumas de suas postagens identificadas com sentimento negativo devido ao compartilhamento de casos de violência (física ou psicológica), transfobia e discurso de ódio contra pessoas trans – para fins de denúncia, mobilização e sensibilização –, e também por postagens com tom crítico ao governo do ex-presidente.

 

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Fonte: Facebook | Elaboração: Democracy Reporting International (DRI)

  • Entre os grupos com maior número de postagens, apenas o grupo “Libertos por Deus LPD” teve a maior parte de suas postagens classificadas como positivas. As mensagens são lidas pelo modelo léxico como positivas em razão da forma como os usuários relatam suas experiências religiosas de “milagres” de conversão, utilizando palavras e expressões positivas, como indicado anteriormente neste relatório a partir da modelagem de tópicos. 

 

Gráfico 4: Sentimento das postagens em grupos públicos do Facebook

Período: de 1° de janeiro 2019 a 30 de abril de 2023

gráfico de barras

Fonte: Facebook | Elaboração: Democracy Reporting International (DRI) 

  • A análise dos dados revela uma variedade de sentimentos em relação às postagens associadas a cada um dos tópicos que identificamos. Alguns deles, como "Ideologia de gênero" e "Visibilidade trans e suas repercussões", apresentam um equilíbrio entre sentimentos negativos e positivos, o último com uma porcentagem considerável de sentimentos neutros. 
  • O equilíbrio dentro de “Ideologia de gênero” pode ser explicado por diversos posts que parabenizaram medidas adotadas durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Um exemplo que aparece em muitas postagens fazem referência à fala da ex-ministra do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos,  Damares Alves, em que ela afirma “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”, reforçando um estereótipo de gênero na sociedade. Pelo tom de parabenização e concordância com a fala, muitas mensagens são lidas pelo modelo lexical como positivas.

 

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Fonte: Facebook | Elaboração: Democracy Reporting International (DRI)

  • Outros tópicos, como "Mobilização política antitrans" e "Banheiros neutros quanto a gênero", possuem uma inclinação negativa, com uma porcentagem maior de sentimentos negativos. No caso do tópico “Banheiros neutros quanto a gênero” há muitas postagens que interseccionam desinformação sobre o assunto e discurso de ódio, sugerindo, por exemplo, que a transgeneridade poderia ser simulada por “qualquer um”. 
  • Nesses casos, a narrativa construída questiona e busca deslegitimar a identidade de gênero de mulheres trans ao sugerir que a reivindicação política por banheiros neutros quanto a gênero representaria ameaça a mulheres cisgêneras — que estariam sujeitas, por exemplo, a abusos. 

 

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Fonte: Facebook | Elaboração: Democracy Reporting International (DRI)

  • Por outro lado, os tópicos "Redes de apoio e acolhimento" e "Linguagem não-binária" têm uma predominância de sentimentos positivos. No caso de “Redes de apoio e acolhimento”, o sentimento é explicado pelas postagens feitas em tom de amizade e, por exemplo, com o propósito de conhecer outras pessoas com experiências similares. Já o tema “Linguagem não-binária” é classificado desta forma devido ao tom jocoso que muitas postagens possuem — que, embora não sejam lidos pelo modelo como negativas, sugerem a representação da pauta como algo que não deveria ser levado a sério.
  • O tópico "Religião e identidade/expressão de gênero" recebe uma alta porcentagem de sentimento positivo devido ao tom de “salvação” e “gratidão” que as postagens recebem, como já foi discutido no relatório. Ressalta-se que, embora não mencionem de forma expressa, as postagens se referem às chamadas “terapias de conversão”, supostos tratamentos cujo objetivo é “reverter” a homossexualidade ou, no caso, a transgeneridade de pessoas. No Brasil, práticas como estas são proibidas pelo Conselho Federal de Psicologia para pessoas homossexuais desde 1999 e para pessoas trans desde 2018.

 

 

 

 

Elaborado por:

Ligia Fabris (Professora da FGV Direito Rio e Coordenadora do Projeto “Mídia e Democracia” na Escola de Direito)

Victor Giusti (Pesquisador da FGV Direito Rio/ Projeto “Mídia e Democracia”)

Beatriz Saab (Pesquisadora de Democracia Digital na Democracy Reporting International)