Racismo ambiental no contexto das enchentes do Rio Grande do Sul
Por: FGV Direito Rio
Por: FGV Direito Rio
- Acompanhamos um pico de postagens nas redes após o anúncio de políticas focalizadas do Ministério da Igualdade Racial para grupos vulnerabilizados no contexto dos desastres socioambientais no Rio Grande do Sul, partindo de categorias sobre "racismo online" pré-estabelecidas pelo Aláfia Lab (2024), mapeamos estratégias narrativas sobre tal fenômeno neste debate.
- De um total de 498 postagens, identificamos que a quantidade de postagens que utilizam estratégias do racismo online foi quase igual a de postagens informativas (22,89% e 22,49%, respectivamente). No entanto, as publicações que veiculam discursos que estruturam o racismo online atingiram cerca de 20% a mais de interações do que as publicações informativas (59,02% e 40,97%, respectivamente);
- A invisibilização foi a estratégia narrativa mais mobilizada nas publicações, aparecendo 52 vezes (10,45%) no total. O objetivo dessas postagens foi atacar a pauta racial, argumentando ser contraditória a atuação do Ministério da Igualdade Racial ao enfatizar o apoio a um grupo de pessoas afetadas pelas enchentes;
Apresentação
Em janeiro de 2024, a discussão sobre racismo ambiental repercutiu nas redes sociais quando a Ministra Anielle Franco utilizou o termo para caracterizar os efeitos das fortes chuvas sobre determinadas populações do Rio de Janeiro. Infelizmente, isso ocasionou uma onda de ataques à Ministra, como demonstrado em relatório anterior do projeto Mídia e Democracia.
O debate sobre racismo ambiental retorna à pauta com as enchentes do Rio Grande do Sul. A influenciadora Michele Abreu viralizou nas redes sociais após publicar um vídeo em seu perfil do Instagram associando a tragédia climática no Rio Grande do Sul às religiões de matriz africana. Dada a repercussão e gravidade do caso, a influencer foi denunciada pelo MPMG por intolerância religiosa.
Além disso, após o pedido feito pelo Ministério da Igualdade Racial (MIR) ao Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) para a criação de políticas focalizadas para o atendimento de grupos vulnerabilizados – especificamente pessoas quilombolas, ciganas, indígenas e afrodescendentes, mais afetados pelas enchentes e com maior dificuldade de acesso material a mecanismos de reparação e reconstrução – diversas críticas passaram a ser tecidas por atores da oposição ao governo. Ataques e críticas foram especialmente direcionados à Ministra Anielle Franco e ganharam notoriedade com a fala do senador Flávio Bolsonaro, durante sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. De tal modo, o presente relatório procurou observar o debate sobre o tema nas redes, buscando compreender quais as principais narrativas acionadas em apoio ou crítica à iniciativa proposta pelo MIR.
Metodologia
Este relatório foi elaborado a partir de dois conjuntos de dados de postagens realizadas nas plataformas Facebook e Instagram entre 25 de abril e 20 de maio de 2024. Os dados foram extraídos dessas redes utilizando uma sintaxe de busca orientada por expressões e hashtags relacionadas ao tema do racismo ambiental no contexto das chuvas no Rio Grande do Sul.
Foram extraídas no total 203 postagens do Facebook e 804 do Instagram. A análise qualitativa dos perfis e conteúdos das postagens, foi realizada tendo em vista os links, vídeos e imagens disponíveis para consulta. A categorização dos perfis teve como referência inicial a classificação proposta por Nina Santos (2020), adaptada e também utilizada em outros relatórios deste projeto de pesquisa. Empregamos neste estudo as seguintes categorias: (i) criador de conteúdo; (ii) governo; (iii) mídia alternativa; (iv) mídia tradicional; e (v) político.
Para análise de conteúdo, as postagens do Facebook e do Instagram foram agregadas. Classificamos as postagens utilizando como referência quatro estratégias principais dos discursos racistas nas redes, proposta pela organização Aláfia Lab (CARREIRO ET AL., 2024, p. 6). A descrição das categorias estão no Quadro 1, abaixo.
Veja aqui o quadro com estratégias de racismo online .
Além dessas estratégias de narrativas, outras categorias também foram utilizadas para dar conta da complexidade do material encontrado. A descrição delas está no quadro abaixo.
Veja aqui o quadro 2, com categorias complementares de análise
Cabe ressaltar que a categoria “desumanizar” foi retirada das análises, uma vez que não foram encontradas postagens dessa natureza expressas no conjunto de dados coletados. Durante a análise, identificamos 140 postagens no Facebook e 369 no Instagram que não possuíam relação com o escopo deste relatório e foram desconsideradas para este estudo. As análises principais apresentadas nesta pesquisa, portanto, dizem respeito ao total de 498 postagens, sendo: 63 postagens publicadas em 55 páginas diferentes no Facebook e 435 postagens de 363 páginas diferentes no Instagram.
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Interações entre tipos de perfis e categorias de postagens
O Gráfico 1 abaixo mostra a evolução das postagens sobre racismo ambiental no contexto das chuvas no Rio Grande do Sul, publicadas entre 25 de abril e 20 de maio de 2024 nas plataformas Facebook e Instagram. Do total de 498 posts identificados sobre o tema, 143 posts foram publicados em 07 de maio.
Gráfico 1: Nº de postagens no Facebook e Instagram sobre racismo ambiental no RS entre 25 de abril e 20 de maio de 2024
- O pico de postagens no dia 07 de maio aconteceu após o anúncio, por parte do Ministério da Igualdade Racial, de que a pasta estava participando ativamente na força-tarefa de apoio emergencial às famílias do Rio Grande Sul, especialmente as comunidades quilombolas, ciganas e povos e comunidades tradicionais de matriz africana e de terreiros atingidos pelas enchentes.
- O Gráfico 2 abaixo demonstra os perfis que produziram conteúdo em torno do debate de racismo ambiental, segmentado entre “estratégias de racismo online” e “informativo”.
Gráfico 2: Relação entre perfis, estratégias e informativo
Fonte: Facebook e Instagram | Elaboração: FGV Direito Rio
- A categoria "estratégias de racismo online" representa a soma de postagens classificadas como desqualificadoras, invisibilizadoras e desinformadoras. Como ressaltado em nossa metodologia, nos apoiamos na análise de Carreira et al (2024, p. 6) para tal construção – excetuada a categoria "desumanização" pela ausência de postagens identificadas como tal em nosso conjunto de dados.
- Dentre os perfis que publicaram o material analisado, “Criador de conteúdo” lidera como aquele que mais vezes publicou nos dois segmentos identificados, 88 vezes. Em decorrência do grande volume de publicações feitas por esse perfil, ele se consolidou como aquele que mais mobilizou as estratégias narrativas identificadas, assumindo assim o protagonismo entre os perfis constatados.
- Já em “Mídia Alternativa”, com 53 publicações no total, há uma concentração de postagens informativas em detrimento das postagens onde foram identificadas estratégias narrativas.
Gráfico 3: Número de postagens por categoria
Fonte: Facebook e Instagram | Elaboração: FGV Direito Rio
- Apoio em geral funciona para captar as postagens que não são doações nem deslegitimam a fala da Ministra Anielle Franco, ou o conceito de racismo ambiental. Em outras palavras, a categoria apoia a existência do racismo ambiental. No Facebook, houve 34 postagens desse tipo e no Instagram 117 totalizando 151 (30,32%).
Figura 1: Exemplos de postagens que reconhecem a existência do racismo ambiental
Fonte: Facebook e Instagram | Elaboração: FGV Direito Rio
- Das 498 publicações analisadas, 134 tinham como teor pedidos para “doações” de suprimentos, alimentos e recursos financeiros para os atingidos pelas chuvas, direcionados a determinados grupos, para a população em geral e para o governo do estado do Rio Grande do Sul.
2.Estratégias Narrativas
- Esta seção se dedica a analisar as estratégias narrativas identificadas nas postagens que se posicionam contra a Ministra Anielle Franco e que, de forma direta ou indireta, negam o racismo ambiental. Como exposto em nossa metodologia, as categorias definidas por Carreiro et al. (2024, p.6) e identificadas em nosso relatório são: Desqualificar, Invisibilizar e Desinformar.
- Como observado no Gráfico 2, a categoria “Criador de conteúdo” é a que mais mobiliza as estratégias narrativas de racismo online, concentrando 34 (65%) publicações classificadas como “Invisibilizar”; 21 (85%) das postagens classificadas como “Desqualificar”; e 27 (79,41%) das publicações classificadas como “Desinformação”.
2.1 Desqualificar
- A categoria “desqualificar” trata de publicações que negam a validade ou valor de experiências, trajetórias ou identidades de indivíduos ou grupos afetados pelo racismo ambiental. Do material examinado, identificamos 28 publicações com esse objetivo, o que representa 5,63% da amostra.
- Para este relatório, a categoria auxiliou na identificação de publicações que tinham objetivo de desqualificar as ações conduzidas pela Ministra Anielle Franco.
- Os discursos, majoritariamente, indicavam que a Ministra não teria capacidade de conduzir ações governamentais e que sua pasta não cumpriria seu papel como deveria, também com ataques ao governo e à pauta considerada como "identitária".
Figura 2: Exemplo de “desqualificar”
Fonte: Instagram | Elaboração: FGV Direito Rio
Invisibilizar
Esta estratégia narrativa abarca publicações que atacam a pauta racial em busca de anular as discussões em torno do racismo. A inviabilização
foi a estratégia narrativa mais vezes empregada nas postagens analisadas. Das 498 postagens analisadas, 52 (10,45%) foram classificadas assim.
- Observamos a predominância de discursos que afirmam haver uma contradição na atuação do Ministério da Igualdade Racial.
- A argumentação principal em tal grupo de postagens é que políticas que objetivem priorizar atendimento focalizado e assistência para grupos socialmente vulnerabilizados, como as populações ciganas e quilombolas, implicaria em uma discriminação das demais raças e etnias, em desconsideração da disparidade socioeconômica existente.
- De tal forma, a pauta da necessidade de políticas focalizadas é invisibilizada.
Figura 3: Exemplo de “Invisibilizar".
Fonte: Instagram | Elaboração: FGV Direito Rio
Desinformar
- A estratégia “desinformar” reúne postagens que utilizam informações falsas ou descontextualizadas a fim de atacar e descredibilizar pessoas, grupos ou questões raciais. Das publicações analisadas, 34 delas continham esse teor, ou seja, (6,83%) da totalidade pesquisada.
- Esta estratégia narrativa implica a fabricação de peças com teor de informação, mobilizando nos usuários(as) das plataformas a ideia de que aquele conteúdo se trata de uma veiculação oficial.
- A Figura 3 abaixo exemplifica uma publicação neste sentido, em que é retirada de contexto o significado do termo "igualdade racial" em uma busca no Google, manipulando-se o seu sentido para atender a uma pauta de cunho ideológico.
Figura 4: Exemplo de “Desinformar”
Fonte: Instagram | Elaboração: FGV Direito Rio
Gráfico 4: Informar versus Desqualificar, Invisibilizar, Desinformar
Fonte: Facebook e Instagram | Elaboração: FGV Direito Rio
- As categorias “desqualificar”, “invisibilizar” e “desinformar”, que funcionam como estratégias de racismo online, representaram 22,89% do total do debate. Isso mostra que, mesmo que a diferença seja pequena, no recorte do presente relatório, conteúdos que vão no caminho contrário de informar foram mais produzidos que aqueles com objetivo de informar.
- Na observação das interações de conteúdos que integram as estratégias de racismo online e conteúdos informativos, há uma diferença significativa, como é possível observar no Gráfico 5 abaixo:
Gráfico 5: Interações Informar versus Desqualificar, Invisibilizar, Desinformar
Fonte: Facebook e Instagram | Elaboração: FGV Direito Rio
- Conteúdos compreendidos como estratégias de racismo online tiveram um número de interações muito superior ao conteúdo informativo. 40,97% das interações totais foram para as postagens informativas, enquanto 59,02% foram de conteúdos relacionados às estratégias de racismo online, representando quase 20% de diferença.
- Essas interações representam Likes e Reações (o que inclui emojis de risada, coração entre outros), comentários e compartilhamentos no caso do Facebook.
- A proporção das interações representa que os conteúdos que prejudicam a disseminação de informações verificáveis contam com mais engajamento dos internautas. Ou seja, apesar de numericamente equivalentes os conteúdos contendo narrativas de racismo online são mais difundidos que os informativos.
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Casos de racismo
- Durante a análise dos dados, foram encontradas denúncias de racismo em abrigos no Rio Grande do Sul e outros casos atinentes ao debate, classificados como "Casos de Racismo" (58, ou 11,65% do total).
- No Facebook todas as postagens tiveram relação com as declarações da influenciadora Michele Abreu. As postagens do Instagram abordam o conceito “racismo ambiental” em assuntos mais variados, trazendo, inclusive, informações para o debate em pauta e explicações de conceitos mais complexos.
Figura 8: Exemplos de postagens categorizadas como “casos de racismo”
Fonte: Facebook e Instagram | Elaboração: FGV Direito Rio
- No que tange casos de racismo, os perfis que majoritariamente moveram esse debate foram Criador de conteúdo e Mídia alternativa. Ambos somando 45 postagens, de um total de 58 postagens classificadas como tal.
Gráfico 6: Casos de racismo e perfis
Fonte: Facebook e Instagram | Elaboração: FGV Direito Rio
- A Figura 4 apresenta a nuvem de palavras com os principais termos utilizados em postagens categorizadas como Casos de Racismo.
Figura 4: Nuvem de palavras de “Casos de racismo”
Referencias:
3.As fortes chuvas tiveram início em 27 de abril e ganharam força no dia 29. As áreas mais afetadas são os vales dos rios Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos, Gravataí, além do Guaíba, em Porto Alegre, e da Lagoa dos Patos, em Pelotas e Rio Grande. Até o dia 20 de maio, haviam 444 municípios afetados, 136 pessoas mortas, 125 pessoas desaparecidas, 71.398 pessoas vivendo em abrigo e 339.928 desalojadas. Fonte: Agência Brasil, 2024. Disponível em <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-05/numero-de-mortos-no-rs-sobe-para-136-desaparecidos-chegam-125> acesso em 20 de junho de 2024.
5.Ministério quer priorizar distribuição de alimentos a ciganos e quilombolas no RS
7.A sintaxe de busca (também conhecida por query) refere-se à maneira como formulamos consultas para procurar informações específicas em bancos de dados, motores de busca ou sistemas de filtragem de dados. Esses filtros têm a base linguística, o que corresponde a um aglomerado de palavras-chave (ou termos) associadas a operadores booleanos e caracteres de linguagem de programação. Para este relatório, agradecemos à equipe da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da FGV pelo apoio na elaboração do conjunto de palavras que orientaram a busca e extração das postagens.
8.SANTOS, Nina. Fontes de informação nas redes pró e contra o discurso de Bolsonaro sobre o Coronavírus. E-Compós, v. 24, jan-dez, 2021. Disponível em: https://www.e-compos.org.br/e-compos/article/view/2210.
9.Nesse sentido, ver: Ataques, violência de gênero online e desinformação na pré-campanha à prefeitura de São Paulo em comentários do YouTube | Mídia e Democracia; "O que é Racismo Ambiental?" Para onde a Internet levou o debate do termo a partir da fala da ministra Anielle Franco | Mídia e Democracia, entre outros.
10.Para uma explicação mais detalhada da classificação, consultar: [FGV DIREITO RIO_PROJETO MÍDIA E DEMOCRACIA] Categorização de perfis_canais em redes sociais.pdf
11.CARREIRO, Rodrigo; GUERRA, Ellen; SANTOS, Nina; ALMADA, Maria Paula. Racismo pra quê? As estratégias dos discursos racistas nas redes. Salvador: Aláfia Lab, 2024. 29 p.
Elaborado por:
Este relatório foi produzido pelo Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio no âmbito do Projeto Mídia e Democracia.
Autoria:
Yasmin Curzi (Professora da FGV Direito Rio, Coordenadora do Programa de Diversidade & Inclusão e do Projeto "Mídia e Democracia" na Escola de Direito)
Carolina Peterli (Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Fernanda Gomes (Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Giullia Thomaz (Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Hana Mesquita(Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Iris Rosa (Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Isabella Markendorf Marins (Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Lorena Abbas (Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Camila Lopes (Pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio)