Mulheres e armas de fogo: recomendações de conteúdo no YouTube
Por: FGV Direito Rio
Por: FGV Direito Rio
- Em teste autoetnográfico, o sistema de recomendações do YouTube nos levou a vídeos com conteúdo de violência explícita e sobre armamento, sem qualquer tipo de alerta, contrariando a própria política da plataforma sobre tais conteúdos;
- Além disso, recomendou vídeos que estimulam o uso de armas de fogo por mulheres, a partir do reforço a estereótipos de gênero;
- O principal argumento encontrado para defender o armamento de mulheres civis foi o apoio a justiçamento em casos de violência doméstica e urbana, representando 46,18% do total de comentários (2.834) analisados;
- De outro lado, de 1.134 comentários analisados em 12 dos 13 vídeos selecionados, cerca de 13% mobilizaram argumentos misóginos para defender a incapacidade de mulheres, especificamente, de portarem armas de fogo;
- Considerando 1 vídeo em específico, considerado como outlier devido a sua alta interação, em que uma policial mulher atira em um assaltante na porta de uma escola, há um aumento de cerca de 300% no uso de retórica antifeminista no total de comentários (2.834), como argumento para a defesa do armamento de mulheres;
- Tanto no conteúdo dos vídeos, quanto nos comentários há incentivo ao consumo de acessórios e produtos para armamento específicos para mulheres, com propagandas e links para sites de venda desses produtos, o que também contraria a política da plataforma.
Grupos armamentistas têm buscado ampliar e desburocratizar o armamento de civis. A justificativa é que a arma de fogo é uma ferramenta de proteção à integridade patrimonial, para ambos os gêneros, e de defesa da integridade física e sexual, especificamente para o gênero feminino. Como contraponto, dados têm apontado que o feminicídio – decorrente de ciclos de violência pautados na relação desigual entre homens e mulheres – têm ocorrido mais de metade das vezes com o uso de armas de fogo, pelos parceiros das vítimas e dentro de seus domicílios.
Compreendendo o potencial interesse de usuários sobre o tema, construímos este relatório a partir da seguinte questão: o que uma usuária do YouTube, mulher, com idade entre 25 e 40 anos, encontraria na busca por informações em vídeos da plataforma? Como desdobramento desta investigação inicial, analisamos também os comentários dos vídeos selecionados, com o propósito adicional de entender quais as principais características da discussão sobre mulheres e armamento civil para os usuários da plataforma também implicados neste debate.
Metodologia
O objetivo deste relatório foi investigar as recomendações algorítmicas do YouTube a partir da simulação de uma usuária mulher interessada no debate sobre armas de fogo. Adicionalmente, procuramos identificar como a discussão sobre mulheres e armamento ocorre a partir da análise de comentários dos vídeos disponibilizados na plataforma.
Em um primeiro momento, realizamos buscas ativas com base no suposto interesse de uma usuária simulada, Joana, mulher brasileira, com idade entre 25 e 40 anos, interessada em armas de fogo e que quer se armar para autodefesa. O roteiro abaixo descreve o procedimento realizado para a pesquisa:
- Para acessar o YouTube e realizar a simulação, criamos um e-mail e conta específicos na plataforma.
- Utilizamos na primeira pesquisa de vídeos as seguintes palavras-chave: mulher, armas, porte velado e autodefesa. Essa busca ativa foi realizada como primeiro input a partir do qual o algoritmo de recomendação da plataforma começaria a trabalhar, sem o risco de “contaminação” de preferências prévias.
- A partir dos resultados das buscas, selecionamos e assistimos, até o limite de 5 vídeos, aqueles cujos títulos continham a combinação do recorte de gênero – ex.: mulheres, feminino – e porte, compra e/ou uso de armas de fogo para fins de autodefesa.
- A partir de cada um desses vídeos resultantes da busca ativa, também selecionamos e assistimos os 5 primeiros recomendados na aba lateral pelo algoritmo do YouTube, observando, novamente, a combinação do gênero e pertinência temática.
- Do total de 25 vídeos assistidos, excluímos aqueles que:
- Não foram publicados entre janeiro de 2018 e abril de 2024;
- Não tratavam exclusivamente do porte e/ou utilização de armas por mulheres para fins de autodefesa;
- Possuíam menos de 50 comentários.
- Esse procedimento resultou numa lista final com treze vídeos, dos quais (i) sete resultaram diretamente da busca ativa da usuária Joana e (ii) seis das recomendações algorítmicas do YouTube que apareceram nas abas laterais a partir da visualização dos vídeos da busca ativa.
- Dividimos os vídeos selecionados em dois blocos:
- Bloco I: “Apoio ao armamento de mulheres”, onde o conteúdo do vídeo é voltado para dicas sobre acessórios e munições; cursos de capacitação; debates envolvendo gênero e armas de fogo; em todas as abordagens o recorte era o público feminino.
- Bloco II: “Treinamento para mulheres armadas”, aqui, o conteúdo é especificamente voltado para o porte de armas de mulheres, ou seja, atividades envolvendo armas municiadas, portanto, prontas para atirar ou atirando.
Veja aqui a lista dos videos selecionados, com uma breve descrição do conteúdo, no Quadro 1.
- Dos 13 vídeos selecionados, extraímos 3.357 comentários no total. Excluímos 412 comentários a partir dos seguintes critérios: (i) respostas entre usuários, cujo conteúdo não estava atrelado a uma interação com o vídeo e as personagens em si; (ii) ruídos comunicacionais – erros, links externos, ou outros não passíveis de classificação. Dos 2.945 comentários restantes, descartamos durante a análise qualitativa outros 111 que não apresentaram pertinência temática para o debate. Desse modo, restaram 2.834 comentários a partir dos quais realizamos as análises presentes neste relatório.
- Para a análise quantitativa dos comentários dos vídeos a partir das categorias apresentadas acima, desconsideramos o vídeo “Mãe PM atira em ladrão na porta de escola em São Paulo”. Consideramos-o um outlier, por ser responsável por 39,5% do total de comentários analisados em toda a pesquisa. Além disso, possui outras características que o fazem diferir dos outros vídeos, como ter viralizado em diversos perfis do YouTube, possuir comentários em diferentes idiomas e ter como protagonista uma parlamentar. Essa diferença também se reflete nas características dos comentários: a maioria deles demonstra apoio ao justiçamento.
- Análise do conteúdos dos vídeos selecionados no YouTube
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Políticas da plataforma: armas de fogo, munições e violência
A partir da descrição e análise dos vídeos, foi possível identificar que muitos deles possuem conteúdos relacionados à exposição à violência explícita que violam as polícias da plataforma. Analisamos os vídeos selecionados considerando a possibilidade de violação (i) das Políticas de Conteúdo Violento ou Explícito do YouTube; (ii) das Políticas de Armas de Fogo do YouTube descritos a seguir.
Conteúdo explícito ou violento:
- Incitar violência contra indivíduos ou um grupo definido de pessoas.
- Lutas envolvendo menores.
- Filmagens, áudio ou imagens envolvendo acidentes rodoviários, desastres naturais, cenas derivadas de guerras e ataques terroristas, brigas de rua, ataques físicos, imolação, tortura, cadáveres, protestos ou motins, roubos, procedimentos médicos ou outros cenários com a intenção de chocar ou causar repulsa nos espectadores.
- Gravações ou imagens que mostrem fluidos corporais, como sangue ou vômito, com a intenção de chocar ou causar repulsa nos espectadores.
- Filmagens de cadáveres com ferimentos graves, como membros decepados.
Os tipos de conteúdo a seguir não são permitidos no YouTube. Esta não é uma lista completa:
- Filmagens de procedimentos médicos com foco na exibição de feridas abertas em conteúdo explícito que não é educativo nem inclui explicações de espectadores
- Filmagens de crimes, como assaltos violentos, que não fornecem informação educativa ao explicação aos espectadores
- Filmagens de celular, câmera de trânsito ou circuito fechado de TV mostrando feridos ou mortos em um acidente, acompanhadas de um título como “Acidente inacreditável” ou “Aviso: muito sangue”
- Vídeos de decapitações
- Agressões com títulos como “Veja esse cara ser espancado!”
Não publique conteúdo no YouTube se o objetivo for um dos seguintes:
- Comercializar armas de fogo ou acessórios relacionados por meio de venda direta (por exemplo, vendas privadas feitas por pessoas) ou de links para sites que vendam esses itens. Esses acessórios podem incluir:
- acessórios que permitem simular disparo automático em armas de fogo;
- acessórios que possibilitem o disparo automático em uma arma de fogo, como "bump stocks", gatilhos automáticos, dispositivos ou kits de conversão;
- carregadores ou coldres de alta capacidade contendo mais de 30 cartuchos.
- Dar instruções sobre como fabricar qualquer um dos seguintes itens:
- Armas de fogo
- Munição
- Pentes de alta capacidade
- Silenciadores/abafadores caseiros
- Acessórios que permitem simular disparo automático em armas de fogo
- Acessórios que possibilitem o disparo automático em uma arma de fogo, como "bump stocks", gatilhos automáticos, dispositivos ou kits de conversão
- Dar instruções sobre como converter uma arma de fogo para simulação ou uso de disparo automático.
- Dar instruções sobre como instalar os acessórios ou fazer as modificações mencionadas acima.
- Dar instruções sobre como remover determinados dispositivos de segurança para armas de fogo, como aqueles que impedem que o pente se solte. Isso não inclui a remoção de um dispositivo usado para desativar temporariamente uma arma, como uma trava.
- Tenha em mente que essa não é uma lista completa.
Exemplos:
- “Links no título ou na descrição para sites em que armas de fogo ou os acessórios mencionados acima são vendidos. É permitido adicionar links de sites que falem sobre esses itens ou contenham avaliações deles, desde que não os vendam ou doem diretamente.”
- “Conteúdo que exiba uma arma de fogo com a intenção de vendê-la. Isso inclui fornecer o número de telefone, o endereço de e-mail ou outros dados de contato do vendedor.”
- “Conteúdo que mostre aos usuários instruções detalhadas sobre como terminar uma armação para concluir a fabricação de uma arma de fogo.”
- “Conteúdo que mostre aos usuários como fazer um silenciador usando uma lanterna, uma lata de óleo, um coletor de solvente ou outras peças.”
- “Conteúdo que mostre aos usuários como instalar uma coronha do tipo "bump stock" ou um acessório semelhante criado para simulação de disparo automático.”
- “Transmissões ao vivo que mostram uma pessoa segurando uma arma de fogo, mesmo que ela não seja disparada. Observação: isso não inclui armas de fogo em jogos de videogame.”
- “Transmissões ao vivo que mostram uma pessoa transportando armas de fogo, seja apenas as carregando ou viajando com elas em um carro, caminhão ou outro veículo. Observação: isso não inclui armas de fogo em jogos de videogame.”
- “Esses são apenas exemplos. Não publique conteúdo se acreditar que ele pode violar esta política.”
Análise do bloco “Apoio ao armamento de mulheres”
Este grupo de vídeos traz não apenas conteúdos sobre armas e munições específicas para mulheres, mas também acessórios que podem acompanhar as peças. São vídeos protagonizados por homens e mulheres que trabalham em lojas voltadas para esse mercado, instrutores de estandes de tiros e profissionais da segurança pública. São vídeos que apresentam e/ou discutem como uma mulher pode se armar. A partir da análise do conteúdo dos vídeos do Bloco 1 foi possível identificar elementos que estimulam o consumo de armas e equipamentos relacionados ao armamento voltados para as mulheres envolvendo representações do que seriam as preferências e o comportamento feminino:
- Em geral, tais vídeos contam com a exibição de produtos de armamento ditos “específicos para mulheres”, que reforçam estereótipos de gênero, como cores e modelos que atenderiam melhor a expectativa de mulheres por reproduzirem padrões de feminilidade.
- Comentários deste bloco também sugerem despreparo de mulheres para manejo de armas. Estas são colocadas como descontroladas, ciumentas e possessivas. Alguns destes comentários vão no sentido de atribuir transtornos ou doenças mentais às mulheres, apresentando teor psicofóbico.
Análise do bloco “Treinamento para mulheres armadas”
Os vídeos reunidos neste bloco possuem conteúdo voltado para mulheres que, em tese, já possuem armas, atiram, ou estão prontas para atirar com suas armas municiadas. Aqui, aparecem vídeos com estratégias para circular com armas de fogo, bem como vídeos amadores onde as mulheres estão “em ação”. A análise do conteúdo desses vídeos apresentou uma virada de chave na representação do que é ser e agir como mulher, conforme apontado a seguir:
- Os comentários reforçam estereótipos de gênero para a exaltação de uma figura feminina muito específica: a da mulher que ‘se transforma’, perdendo seus atributos de delicadeza e fragilidade, passando a performar força e bravura, comumente reservadas à masculinidade. A "mulher forte" aqui exaltada é aquela que se apropria de valores atribuídos a tais estereótipos masculinos.
- Há valorização da mulher que "se empodera" a partir da justiça com as próprias mãos – na falta de um Estado eficiente para sua segurança. Esta figura aparece nos comentários em contraste com mulheres defensoras dos direitos humanos, neste caso, feministas. Este estereótipo de mulher, por sua vez, corrobora com a defesa do justiçamento e com uma retórica antifeminista.
Média de comentários por Bloco de vídeos
- A partir do cálculo da média proporcional de comentários por vídeo, verificamos que a maior parte dos comentários destinados aos conteúdos do Bloco I são de natureza interativa – de usuários que elogiam os vídeos e comentam, em geral, positivamente sobre o conteúdo. Como é possível visualizar no Gráfico 1 abaixo, em seguida, os comentários recorrem à retórica antifeminista, com o apoio ao armamento de mulheres sendo alinhado a uma postura de ceticismo em relação ao direito como medida para a solução de conflitos. Em terceiro lugar, segue o apoio ao justiçamento, como forma para a resolução de conflitos.
Gráfico 1: Média de comentários por categoria nos vídeos do Bloco I
Elaboração: FGV Direito Rio
- No caso dos vídeos do Bloco II, o cálculo da média proporcional de comentários por vídeo mostra que a maior parte dos comentários destinados aos conteúdos também são de natureza interativa. Em seguida, os comentários demonstram apoio ao armamento civil e apoio ao justiçamento, conforme visualização do Gráfico 2.
- Os comentários do Bloco II recorrem a argumentos misóginos e que estimulam o desejo pelo consumo de armas de fogo.
Gráfico 2: Média de comentários por categoria nos vídeos do Bloco II
Elaboração: FGV Direito Rio
Análise comparativa de comentários por bloco
- Do total de comentários extraídos dos vídeos do bloco “Apoio ao armamento de mulheres” (267), 32 comentários apoiam explicitamente o armamento civil, enquanto 22 recorrem ao argumento do justiçamento. A argumentação pautada na defesa contra a violência sexual sofrida por mulheres apareceu em 10 comentários analisados. Também deste bloco, encontramos 45 comentários em tom misógino e 33 com uso de retórica antifeminista.
- Do total de comentários do bloco de vídeos “Treinamento para mulheres armadas” (2.567), 290 são em apoio ao armamento civil. Também categorizamos 1.328 comentários como a favor do armamento que recorrem ao argumento do justiçamento e 10 à defesa contra violência sexual sofrida por mulheres. Neste bloco identificamos 154 comentários em tom misógino e 105 com uso de retórica antifeminista.
- Os comentários que se posicionam contra o armamento estão majoritariamente nos comentários de vídeos “Treinamento para mulheres armadas”, somando 23. Nos vídeos “Apoio ao armamento de mulheres” identificamoss apenas 6 contrários.
- Comentários que desaprovam o conteúdo dos vídeos em si, somam 58 no total. Sendo 6 deles em vídeos do bloco “Apoio ao armamento de mulheres” e 52 no bloco “Treinamento para mulheres armadas”.
- Do total de 946 comentários direcionados a interação com os vídeos, 154 deles são do bloco “Treinamento para mulheres armadas”, enquanto 792 foram em vídeos do bloco “Apoio ao armamento de mulheres”.
- Observamos também comentários que mobilizam figuras do cenário político brasileiro, considerados comentários sobre “debate político”. Dos 120 comentários identificados, 108 são nos vídeos do bloco “Treinamento para mulheres armadas”, enquanto 12 do “Apoio ao armamento de mulheres”.
- Mapeamos também comentários que expressavam o desejo pelo consumo de armamentos e produtos relacionados. Categorizamos tais grupos de comentários como “Ostentação” e totalizaram 92, sendo 21 deles no bloco de vídeos “Apoio ao armamento de mulheres” e 71 do bloco “Treinamento para mulheres armadas”.
Análise dos comentários dos vídeos
A partir das categorias estabelecidas no Quadro 2, identificamos os elementos discursivos mobilizados quando buscamos um recorte de gênero nos argumentos de apoio ao armamento civil. Na Imagem 1, a nuvem de palavras apresenta os principais termos que foram utilizados nos comentários analisados.
Imagem 1: Nuvem de palavras com a visualização total do debate
Elaboração: FGV Direito Rio.
Os principais argumentos mobilizados nos comentários dos vídeos selecionados no YouTube foram:
1.Justiçamento:
O conceito de justiçamento se distingue do conceito de justiça na medida em que o indivíduo que perpetra o justiçamento é responsável por julgar o ato praticado por outrem e puni-lo. A ideia de justiçamento se expressa, principalmente, em vídeo que contém violência explícita, infringindo a política da plataforma. Aqui, o gênero aparece como a exaltação a mulher justiceira, heroína.
“Ladrão fraco leva tira de mãe heroína essa humilde heroína merece aplausos.”
“ Protegeu inocentes crianças e adultos, isso é empoderamento, isso é orgulho, isso é ser mulher de verdade.”]
“Heroína! Salvou pessoas adultas e crianças! Minhas palmas, agradecimento e respeito.”
"Maravilhoso trabalho desta mãe. Colocou o vagabundo para cantar pra subir. Este ai nao mata e nem rouba mais ninguem. 👋👋👋👋"
- No vídeo intitulado “Mãe PM atira em ladrão na porta de escola em São Paulo” em específico, o lugar de “ótima mãe” e “grande mulher” são exaltados pela utilização da arma de fogo de maneira a convencer o espectador de sua eficiência e controle da situação. Cabe lembrar que a personagem do vídeo é parlamentar e sua capacidade de uma boa atuação em cargo público também é aclamada por tal motivo.
- Notamos que o vídeo também atrai muitos comentários cujo o argumento reforça a noção de justiçamento, independentemente da figura da mulher como justiceira. Nesse sentido, observamos comentários tanto em português, quanto em língua estrangeira.
“Ótima profissional, defendendo a população.. parabéns.. bandido bom é bandido morto sempre.. mate todos os políticos corruptos por favor. Acredito que não sobraram muitos vivos. Obg”
“Boa, meus parabéns tem que fazer isso aí mesmo safadão acha que pode sair ganhando todo mundo assim 😊”
- Este vídeo em específico, viralizou em diversos países, foi possível identificar comentários em ao menos 15 idiomas diferentes:
“Don't fck with Mama Bear!” (“Não brinque com a mamãe urso!”), traduzido do inglês.
“POWER OF MOM 😂😂😂” (“O PODER DA MÃE 😂😂😂”), traduzido do inglês.
“Wow she a beast” (“Uau ela é uma fera”), traduzido do inglês.
“mom of the year❤” (“mãe do ano ❤”), traduzido do inglês.
“頼れるおかんやな😅” (“Uma mãe confiável 😅”), traduzido do japonês.
“어머니는 용감하다” (“Mãe é corajosa”), traduzido do coreano.
“คุณแม่จอมโหด” (“mãe feroz”), traduzido do tailandês.
“Стой, а то моя мама будет стрелять_)))))” (“Parado, senão minha mãe vai atirar”), traduzido do russo.
“Vợ tôi đấy các mẹ ạ :proud:” (Essa é a minha esposa, orgulhoso!), traduzido do vietnamita e do inglês.
“Zuch kobieta 👍❤” (“Mulher corajosa 👍❤”), traduzido do polonês.
“Деваха молодец” (A garota mandou bem), traduzido do russo.
“👍👍 jcroit que chez nous en france on va pa tarder a en venir a ce point la , crée sa propre securité , le monde devien fou.” (Eu acho que na França não vamos demorar a chegar a esse ponto, criar nossa própria segurança, o mundo está ficando louco), traduzido do francês.
2.Misoginia7:
A categoria de misoginia abrange tanto comentários que contêm (i) inferiorização e ódio às mulheres, como comentários que apelam a (ii) estereótipos de gênero:
- A maioria dos comentários sugerem despreparo de mulheres para manejo de armas, reforçando estereótipos de gênero. Elas seriam descontroladas, ciumentas, possessivas e poderiam matar seus companheiros. Outros comentários sugerem trocar de mulher caso esta tenha algum transtorno ou doença mental, apresentando teor psicofóbico:
“Se for uma bordeline é melhor trocar mesmo e rápido”
“Eu não confio. Não é sequer pelo caráter dela, mas porque em determinada época ela apresentou um quadro de depressão.”
“Mulher ciumenta é igual leão faminto, se estiver com fome vai atacar”
“Uma panela com água fervendo é o suficiente para a mulher fazer merda. 😂 Deixo a minha na gaveta, fico com receio na época que a mulher está com TPM 😂. Os outros dias fico de boa.”
“A própria esposa ciumenta já é uma arma. [Mais especificamente, Uma Bomba-Relógio.] Mulher de TPM armada deveria ser proibido kkkk”
- Ainda, há comentários no sentido de induzir que as mulheres são naturalmente traiçoeiras e, por isso, não caberia ter armas próxima a elas devido ao suposto risco de vida:
“Se a mulher enganou o Adão o cão e imagina eu que sou bobão?”
“Vai que tem mulher da cabeça ruim,e que atirar na gente!!!”
“Me apaixonei por essa mulher . Só não queria dormir na mesma cama com ela 😂😂😂😂 tá doido dirrepente eu sonho falando o nome de outra mulher. É sal pra mim kkkkkkkk”
“Neste caso recomendaria um Gun Lock Motion detector, espécie de trava no guarda Mato, qualquer movimento o alarme dispara. Mas recomendo mesmo que vc, trocar de mulher.”
- Vídeos que retratam mulheres fazendo uso de armas de fogo recebem comentários em tom de suposto elogio e manifestações de desejo e/ou medo de se relacionar com a mulher armada, mesmo no contexto de um vídeo que apresenta uma menina de 13 anos. Além disso, argumentos sugerem que o armamento de crianças seria a solução para a pedofilia.
“alem de bonita € perigosa kkkkkk”
”Olha ai sim quero ver quem vai ser o namorado dela”
“Kkkkkkkkkk... não quero essa garota como nora...frefiro meu filho solteiro..”
“Eita poha o namorado dela tá lascado se fizer alguma coisa”
“Essa é fera. Coitado do namorado. Vai bixin! Brinca! Kkkkkk”
“Cabo pedófilo casar com uma menina de 13 anos .”
- Identificamos também comentários que interagem com o conteúdo produzido por mulheres de maneira misógina, que desqualificam a protagonista a partir da objetificação de seu corpo:
“Troque tbm a saia preta. Melhor nua.”
“Deusa do armamento nem presto atenção nas armas”
“Leve dentro da calcinha”
“Seguro é o homem cônjuge com essa maravilha!”
- Comentários que fazem comparação entre mulheres jovens e meninas brasileiras e estadunidenses, afirmando que as brasileiras não são mulheres “corretas”. Seriam promíscuas por dançarem funk ao invés de buscar o empoderamento através das armas:
“Enquanto isso brasil as mina ta no baile funk dando pra geral achando que é empoderada, não sabem de nada inocente kkkk”
“Enquanto no Brasil as mina de 13 anos estão grávidas ou no baile funk se drogando e liberando geral pros Zé droguinha.”
3.Retórica Antifeminista
- A maioria dos comentários contendo retórica antifeminista mobilizam e disputam o entendimento do que é empoderamento e feminilidade a partir da utilização de armas de fogo.
“Gente, você arrasou no vídeo! Tem todo o charme de uma mulher empoderada! Isso sim é empoderamento feminino , uma mulher armada não presta contas pra ninguém ❤ parabéns”
“Muito legal o vídeo, estava precisando esse toque feminino, mande mais! Tenho certeza que ainda vem muita coisa boa para as meninas!”
- Muitos deles também reforçam uma concepção de empoderamento feminino pautado no consumo de armas e ironizam o direito à medida protetiva para mulheres em situação de violência doméstica, ao afirmarem que o porte de arma para mulheres seria mais eficiente do que o direito garantido em lei.
“Sem dúvida essa é a melhor medida protetiva que uma mulher pode ter!! :D adorei o vídeo !!!”
“Maridos violentos matam todos os dias, com as mãos, facas e armas de fogo, a única chance de defesa para uma mulher é estar armada.”
“Eu não entendo como as mulheres , que são vitimas de tudo, podem andar desarmadas por aí. Toda mulher deveria portar pelo menos um 32 5 tiros. Ja estava bom.”
“Af, quanta burrice destas esquerdistas! Sabe o que as mulheres que foram vítimas tinham em comum? Nenhuma tinha uma arma para se defender! Sempre jogam toda a nossa liberdade para o ESTADO! São umas escravas do Sistema!"
4.Defesa contra a violência sexual
- Identificamos comentários que mobilizam também a violência sexual perpetrada contra mulheres como suposta justificativa lógica para que estas sejam a favor do armamento:
“Quando estiver com uma faca no pescoço e sua mãe sendo ameaçada de estupro, clame pela sexta emenda da constituição. Tá de brincadeira., Vamos virar um grande Bang Bang??? Vamos, direito a defesa, o homem só se torna livre a partir do momento que ele está de igual pro outro homem , armas não matam, pessoas matam. Direto a defesa. Não quer se armar, direto seu. Mas não se meta no direito dos outros.”
- Além da violência sexual, sugere-se que o armamento de mulheres seria também a solução do feminicídio:
“Tds que tem condições mentais, condições financeiras e quer ter uma arma tem o direito de ter uma arma! Quanto mais armas menos feminicídios!!! Uma mulher armada se protegem”
5.Ostentação
- Comentários que reforçam o desejo por armamentos, estimulando o consumo de armas, acessórios e equipamentos por mulheres, além de estipular mercadorias específicas para mulheres, no sentido de reforçar uma performance social de mulher no molde tradicional e conservador do feminino.
“Quero comprar todas essas pra mim.❤ Mas quem está precisando mais mesmo é a minha irmã que foi assaltada diversas vezes na rua.”
“1 por dia da semana. Chiquérrimo”
“😍😍😍😍😍meu Deus que lindas”
Referências:
- Ainda no mês de maio de 2024, foi aprovado na Câmara de Deputados o PDL 206/2024 que susta parcialmente o Decreto nº 11.615, de 21 de julho de 2023. Entre outras medidas, determina que atiradores não precisam mais comprovar que treinam ou participam de competições para acessarem limite máximo de armas e munições. Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2430026> acesso em 04 de junho de 2024.
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ROCHA, Liz Zimermann. CURY, Elaine Moreira Alves. Armas de fogo e a sociedade brasileira: Uma análise sobre armamento, desarmamento e segurança pública. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 10, Vol. 01, pp. 73-92. Outubro de 2020. ISSN: 2448-0959. Disponível em <https://www.nucleodoconhecimento.com.br/administracao/armas-de-fogo> acesso em 4 de junho de 2024.
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O Papel da Arma de Fogo na Violência Contra a Mulher, produzido pelo Instituto Sou da Paz (2024) mostra que a média de homicídios femininos registrados no país é de 4,4 mil por ano. Entre 2012 e 2022, uma mulher foi assassinada a cada quatro horas no Brasil. Armas de fogo foram utilizadas na metade dos casos, o que significa dizer que uma em cada duas mulheres assassinadas no Brasil é vítima deste armamento. Disponível em: <https://soudapaz.org/wp-content/uploads/2024/03/2403_Viol-armada-genero_infografico-1.pdf> Acesso em 30 de maio de 2024.
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Segundo o Instituto Sou da Paz (2024), 39% dos assassinatos de mulheres dentro de casa em 2022 foram cometidos com arma de fogo. Além disso, 43% das agressões não letais a mulheres com uso de arma de fogo foram cometidas por pessoas que têm proximidade com a vítima, como parceiros, amigos, conhecidos ou familiares. Este tipo de dado aponta para a importância de pensar criticamente a ampliação do acesso às armas no contexto da agenda de combate à violência de gênero, principalmente, à violência doméstica. Disponível em <https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/03/08/mulheres-mortas-por-arma-de-fogo-em-casa.ghtml> Acesso em 05 de junho de 2024.
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É necessário ressaltar que o objetivo é o de evitar ao máximo a “contaminação” das pesquisas que, caso fossem feitas a partir das contas das pesquisadoras autoras, levariam em conta preferências já mapeadas para suas respectivas contas no YouTube. Todavia, considerando que o login como usuário no YouTube só ocorre mediante o uso de um e-mail Gmail, o qual solicita um número de telefone celular para validação da conta, não dispensamos a possibilidade do mecanismo de recomendação automatizada da plataforma realizar uma associação da conta simulada a um e-mail/conta já existente (como se fosse uma espécie de conta “secundária”), cujas preferências do perfil e geográficas já foram traçadas.
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Esse critério resultou na eliminação de vídeos que tratavam, por exemplo, da prática de tiro esportivo, caça, lutas que eventualmente podem servir para defesa pessoal (krav-magá, muay thai, judô, etc.).
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MANNE, Kate. Down girl: The logic of misogyny. Oxford University Press, 2017.
Elaborado por:
Este relatório foi produzido pelo Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio no âmbito do Projeto Mídia e Democracia.
Autoria:
Yasmin Curzi (Professora da FGV Direito Rio, Coordenadora do Programa de Diversidade & Inclusão e do Projeto "Mídia e Democracia" na Escola de Direito)
Carolina Peterli (Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Fernanda Gomes (Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Giullia Thomaz (Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Hana Mesquita(Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Iris Rosa (Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Isabella Markendorf Marins (Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Lorena Abbas (Pesquisadora do Programa de Diversidade & Inclusão da FGV Direito Rio/ Projeto "Mídia e Democracia")
Camila Lopes (Pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio)