Desordem informacional, polarização e protagonismo da direita são a regra do debate público digital brasileiro em 2023

Por: FGV Comunicação Rio 

Por: FGV Comunicação Rio 

No primeiro ano do projeto Mídia e Democracia, diferentes pautas movimentaram o debate público nacional. Nesse sentido, o documento aqui apresentado foi elaborado a partir da compilação dos produtos do projeto em 2023, contribuindo para formar um olhar panorâmico a respeito das principais linhas de análise e ações propostas a partir dos achados reiteradamente identificados, bem como compor um material orientativo para o Conselho do projeto Mídia e Democracia.

O panorama do debate anual é apresentado na primeira seção deste policy paper, intitulada como “Linhas de análise: o panorama anual”. Os destaques subsidiam a segunda seção do documento. Em “Linhas de ação: direcionamentos temáticos”, indicamos possibilidades de trabalho e aprofundamento na elaboração de encaminhamentos à sociedade. Já na terceira parte, denominada “Retrospectiva”, é apresentado um panorama da atuação do projeto, destacando os principais trabalhos desenvolvidos entre fevereiro e dezembro de 2023.

  1. Linhas de análise: o panorama anual

Em 2023, a democracia brasileira se reafirmou como um caso internacionalmente relevante para a necessária promoção da integridade de espaços digitais. Os 46 relatórios de monitoramento de mídias sociais, as 57 checagens de conteúdos com potencial desinformativo, além das reuniões do conselho Mídia e Democracia e eventos, evidenciam como as várias intersecções entre democracia e comunicação estiveram fortemente presentes no caso brasileiro, mesmo em um ano não-eleitoral. 

No país, variados episódios e temas repercutiram nas mais diferentes plataformas digitais. Eles foram largamente monitorados pelo projeto e, juntos, compõem fenômenos de relevo no ecossistema informacional contemporâneo, trazendo achados que podem orientar a ação de diferentes atores envolvidos neste cenário. É o caso do debate público sobre regulação de plataformas digitais, violência política de gênero e raça e meio ambiente.

Em 2023, o acirramento do debate regulatório sobre plataformas digitais no Brasil fez com que esses ambientes digitais se consolidassem como espaço de disputa em torno do Projeto de Lei 2.630/2020, inclusive com o envolvimento direto de conteúdos criados pela Google/Alphabet e pelo Telegram. No processo comunicacional, evidenciamos que a linha adotada pelos opositores à regulação de plataformas foi fortemente predominante. Nesse sentido,  a alegada contraposição entre liberdade de expressão e regulação se sobrepôs tanto a debates programáticos sobre a legislação, quanto à campanha positiva de atores favoráveis à maior responsabilidade e transparência nas redes. 

Com as atividades do projeto, também mostramos como a violência de gênero e de raça, especialmente no contexto da violência política, se torna evidente nas plataformas digitais ao ser instrumentalizada como um componente pernicioso da disputa política. Nesses termos, a misoginia, o racismo e a transfobia são chaves frequentemente acionadas para desqualificar agendas e grupos, contribuindo para a deterioração das perspectivas republicanas consagradas na democracia brasileira. Apesar do marcante protagonismo de conteúdos e atores vinculados ao campo político da direita, verificamos que campos progressistas adotam estratégias similares em momentos de polarização política.

Em meio à hipertrofia de uma política reduzida à distinção entre amigo e inimigo, até mesmo o debate ambiental nas redes carece de qualidade e precisão.  Os resultados mostram que os vários eventos climáticos extremos de 2023 não passaram despercebidos pelo cidadão comum e repercutiram nas plataformas. Apesar disso, os conteúdos em destaque apresentam explicações anticientíficas e conspiratórias para esses fenômenos. Nesse cenário, a desinformação climático-ambiental e ataques frontais aos povos indígenas ganham protagonismo.

Em resumo, os materiais produzidos ao longo do projeto mostram que a informação e a comunicação são protagonistas na disputa política em torno da democracia.  Os resultados alertam para a permissividade dos ambientes digitais à desordem informacional promovida por autoridades políticas e veículos hiperpartidários de mídia, além de demais usuários e páginas vinculados a agendas da extrema-direita e com alto engajamento online. 

Relatório após relatório, as mais variadas pautas de interesse público, da vacinação infantil a mudanças climáticas, são atravessadas não pelo privilégio de informações precisas, mas por conteúdos opinativos e palatáveis, frequentemente descontextualizados ou falseados

Os riscos à integridade informacional seguem no panorama da atuação do Mídia e Democracia em 2024, ano de eleições municipais no país. Nesse cenário, as experiências e expertises estruturadas em 2023 se voltam para a avaliação de riscos e particularidades próprias de processos eleitorais, especialmente os que possuem abrangência municipal.

As possibilidades e riscos mapeados apontam para a necessidade de interlocução entre os diferentes stakeholders. Iniciativas recentes reforçam essa direção, a exemplo da presença da Inteligência Artificial e da desinformação na presidência brasileira do G20 e da possibilidade de um novo Netmundial em 2024. Nesse cenário, o Mídia e Democracia deve seguir se estabelecendo como fórum para a reunião e articulação de diferentes interesses e setores, favorecendo  a articulação de interesses e representantes da sociedade civil, do setor privado, da comunidade acadêmica e do setor governamental pelo fortalecimento da democracia e da integridade informacional.

2. Linhas de ação: direcionamentos temáticos

O balanço das atividades anuais do projeto aponta para desafios em comum nos temas mapeados em 2023, contribuindo para a proposição de eixos de ação transversais às temáticas e que possam ser produtivos a médio e longo prazo. Nesse sentido, as conclusões anuais foram incorporadas em linhas de ação e pontos de possível aprofundamento no debate pautado pelo projeto Mídia e Democracia, podendo ser apropriadas por representantes dos setores atinentes.

2.1 Políticas públicas

2.1.1 A preservação e respeito à integridade democrática e aos direitos humanos em ambientes digitais devem compor a agenda permanente de formuladores de políticas públicas, já que ataques frontais a essas dimensões têm alcançado circulação e visibilidade privilegiadas na esfera pública digitalizada;

2.1.2 Fortalecer a atuação em iniciativas que contribuam para a estruturação e promoção da educação midiática no país, a exemplo da Estratégia Brasileira de Educação Midiática e a Semana Brasileira de Educação Midiática; 

2.1.3 Contribuir ativamente para facilitar o enfrentamento aos desafios da intersecção entre novas tecnologias e democracia, construindo espaços de resolução de problemas por meio da colaboração entre os diferentes setores, a exemplo de grupos de trabalho, comissões e demais iniciativas multissetoriais. 

2.2 Ambiente regulatório

2.2.1 Combater a falsa equivalência entre a regulação de plataformas digitais e o cerceamento da liberdade de expressão, colaborando para fortalecer o enfrentamento programático, qualificado e pautado em evidências científicas de agendas urgentes e em suspenso, como as questões colocadas no PL 2.630/2020;

2.2.2 Mobilizar a experiência nacional e internacional para construir possibilidades legais e infralegais que mitiguem os riscos evidenciados no projeto, atribuam responsabilidades e garantam direitos fundamentais, contribuindo para uma melhor incorporação dos ambientes digitais e novas tecnologias aos processos democráticos. Destaca-se, sobretudo, as áreas de regulação de plataformas, remuneração de conteúdos artísticos e jornalísticos, e Inteligência Artificial;

2.3 Produção de evidências científicas

2.3.1 Garantir a disponibilidade transparente e ética de dados relevantes para a pesquisa científica sobre temas de interesse público. Os obstáculos impostos pelas empresas de mídias sociais impedem o acesso à pesquisa, reduzindo a transparência de ambientes em que o debate público está atualmente concentrado. Estes desafios se fizeram presentes ao longo da execução do projeto, é compartilhado por outros esforços de monitoramento do ambiente digital e é parte fundamental do esforço regulatório relacionado às plataformas digitais.

2.3.2 Evidências científicas devem substanciar debates, ações e regramentos relacionados à integridade democrática e informacional em ambientes digitais, identificando dinâmicas informacionais, mecanismos próprios e tipos de autores predominantes.

3. Retrospectiva 2023

Monitoramento

Em seu primeiro ano, o projeto realizou 43 monitoramentos semanais, abordando temas como a crise humanitária dos Yanomamis, a participação de mulheres na política, o Abril Indígena, além de debates sobre  a PL das Fake News.

O debate mais amplo sobre meio ambiente e os desdobramentos da instauração de CPIs no Congresso Nacional também foram acompanhados pelo projeto. Partindo de acontecimentos que pautaram o debate nas plataformas digitais, a repercussão dos ataques racistas sofridos pelo jogador Vinícius Jr.  e o debate online sobre pessoas trans também tiveram destaque.

No debate relacionado a desinformação, a polarização associada ao debate sobre vacinação e ao HIV, a propagação de fake news relacionada ao transplante do apresentador Fausto Silva e temas relacionados ao sistema judiciário e as urnas eletrônicas, tiveram destaque. O conflito entre Israel e Palestina também mobilizou eixos desinformativos que se relacionam com as disputas no campo político.

Pautas conservadoras mobilizadas pela oposição também foram acompanhadas pelo projeto, que verificou o debate parlamentares sobre a legalização do aborto, os banheiros sem gênero definido e o casamento homoafetivo. As eleições presidenciais na Argentina também foram monitoradas pelo projeto. Para 2024, o projeto pretende se voltar para o monitoramento das eleições municipais, além de outros temas relevantes relacionados ao fortalecimento da democracia.

Fact-Checking

A checagem de conteúdos desinformativos abordou temas como a PL das Fake News, mensagens sobre o conflito entre Palestina e Israel, acontecimentos políticos como a indicação de Flávio Dino ao STF e a eleição de Javier Milei na Argentina, além de conteúdos que objetivam atingir grupos minoritários.

Ao todo, foram feitos 53 conteúdos verificados pela Agência Lupa. Entre as checagens realizadas, destacamos: PCC não planejou executar Lira e Pacheco caso Dino não vá para o STF, É falso que jornalista da Globo chorou ao saber da vitória de Javier Milei na Argentina, Crianças em gaiolas não são de Israel, nem foram capturadas pelo Hamas, ONU não pediu que governos 'forcem' religiões a aceitar 'agenda LGBT+'; 6 mentiras sobre o 'PL das Fake News' publicadas no Telegram, Google, Meta, Twitter, Telegram e Spotify não divulgaram nota contra PL 2.630 prevendo suspensão de serviços em 4 de julho, É falso protocolo de “desintoxicação” após vacina contra Covid-19.
 

Conselho Mídia e Democracia

O conselho Mídia e Democracia organizou quatro ciclos de debate, envolvendo mais de 25 organizações e entidades da sociedade civil. Após um processo de estruturação, em abril e maio o conselho começou o primeiro ciclo abordando a regulação de novas tecnologias, com destaque para a PL das Fake News. Nesse primeiro ciclo, o conselho recebeu o deputado Orlando Silva, relator do PL das Fake News, e o então ministro da Justiça e Segurança e Pública, Flávio Dino, para um debate sobre o projeto de lei e regulação de plataformas. 

O segundo ciclo do conselho Mídia e Democracia tem como foco a violência política de gênero e raça. Foi realizada uma oficina formativa sobre o tema, ministrada pela professora Ligia Fabris da FGV Direito Rio, a diretora executiva do Instituto Mariele Franco, Lígia Batista, e a pesquisadora da FGV ECMI, Letícia Sabbatini. Na segunda e terceira etapa do ciclo, o conselho recebeu a deputada Fernanda Melchionna e as vereadoras Carla Ayres e Caren Castêncio, dos municípios de Florianópolis e Bagé, respectivamente. Além da jornalista e ativista Manuela D’Ávila. 

O terceiro ciclo do conselho Mídia e Democracia tem como pauta “Emergências climáticas, pauta ambiental e desinformação”. A oficina formativa foi realizada pela Lupa, com a participação de Raphael Kapa e Carol Macário falando sobre o negacionismo climático e desinformação relacionada à pauta ambiental. Viviane Tavares também apresentou um estudo do Intervozes sobre desinformação e meio ambiente na Amazônia. A reunião preparatória teve a presença de Heverton Lacerda, jornalista-presidente do AGAPAN; Nádia Pontes, correspondente da Deutsche Welle /Alemanha; e Leila Bataglin, vice-coordenadora do Amazoom (UFRR). O conselho também recebeu a ministra Marina Silva, que falou sobre a necessidade de ação urgente diante da crise climática já estabelecida no mundo.

No quarto ciclo, que encerra os trabalhos do conselho em 2024, o tema escolhido foi “Trabalho precário e plataformizado, as identidades que circulam nas redes e os desafios concretos de práticas e da legislação”. Nesse sentido, o conselho recebeu os pesquisadores Daniele Barbosa e Rafael Grohmann. Na terceira etapa do ciclo o conselho recebeu Marcelo D’Ambroso, desembargador do trabalho no TRT4 e doutor em Ciências Jurídicas. 

Eventos

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O evento “Inteligência Artificial, Desinformação e Democracia”, em parceria com a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e a FGV Conhecimento, contou com a presença online do ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes; do ministro Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luis Felipe Salomão; e do presidente da Confederação Nacional das Instituições Financeiras, Rodrigo Maia e da embaixadora da União Europeia no Brasil, Marian Schuegraf, além de outras autoridades, gestores públicos e especialistas.

Realizado no início de junho, o evento "Democratização e Digitalização: Desafios da Era Digital” contou com a participação da vice-presidente executiva da Comissão Europeia, Margrethe Vestager e da ministra de Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock. Em maio foi promovida uma mesa redonda com membros da União Europeia, para debater a relação entre o Brasil e a UE e os desafios na regulação de plataformas.
 

Impacto na mídia
Desde sua concepção, o projeto Mídia e Democracia teve como objetivo a promoção de impacto social  a partir das evidências produzidas pelos monitoramentos semanais, checagens e debates do conselho Mídia e Democracia. Esses conteúdos foram base da comunicação do projeto nas redes sociais dos parceiros e serviram de base para reportagens em veículos de comunicação de grande circulação no Brasil.

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O evento “Inteligência Artificial, Desinformação e Democracia” foi um marco em termos de impacto midiático para o projeto. Além do público presencial, o evento atingiu mais 1,2 milhão de contas e cujos posts tiveram 2,5 milhões de visualizações nas redes da FGV ECMI. Os dois dias de discussão também foram transmitidos pelos canais oficiais da EBC (TV, rádio e site) e ao vivo pelo youtube. Na mídia brasileira, o evento foi mencionado 68 vezes em veículos de comunicação de diversas regiões do país.

A ampliação da comunicação com a imprensa nacional, a manutenção do diálogo com stakeholders e a ampliação do debate sobre os temas do projeto na sociedade são objetivos fundamentais para o projeto, que procura visibilizar os monitoramentos realizados e colaborar com o fortalecimento de políticas públicas capazes de promover um ambiente comunicativo saudável e orientado pelos valores democráticos.