Debate sobre o Judiciário aponta para ampla desconfiança sobre legitimidade das eleições municipais de 2024 entre bolsonaristas

Por: FGV ECMI

Por: FGV ECMI

  • Ideia de que o Judiciário seria autoritário e se colocaria acima dos demais poderes é preponderante no debate, que é dominado por perfis alinhados a Jair Bolsonaro;
  • Pedidos de voto impresso e manifestações contrárias às ações de regulação das plataformas digitais estão entre os principais assuntos discutidos no X;
  • Nos apps móveis, no X e no Facebook, a percepção de que o STF e o TSE poderiam intervir indevidamente nas eleições de 2024 é majoritária.

Em que medida a imagem do Judiciário está vinculada às reações do campo político bolsonarista e como isso pode afetar as eleições de 2024? Essa foi a pergunta que conduziu o estudo da FGV Comunicação Rio, que avaliou o debate sobre o Judiciário, entre 1º de janeiro e 31 de março de 2024, no X, no Facebook, no Instagram, no Telegram e no WhatsApp. De modo geral, influenciado pelo discurso de desconfiança generalizada das instituições democráticas, é possível dizer que o debate sobre o Judiciário aponta para o descrédito dos tribunais e a crença na perseguição sistemática contra o campo alinhado ao ex-presidente Jair Bolsonaro.

Com destaque, questiona-se ainda medidas recentes do STF e do TSE para combater dinâmicas de desinformação e fake news tendo em vista as próximas eleições. Nesse sentido, campanhas para que os votos sejam impressos e para que ações de regulação das plataformas digitais não sejam levadas adiante marcaram o debate, com a chamada para ação de perfis identificados com o campo bolsonarista para evitar a instauração de uma alegada ditadura do Judiciário a partir das eleições.

Perspectivas sobre o Judiciário brasileiro em destaque

Evolução do debate geral sobre o Judiciário no Facebook e no Instagram

Período: 1º de janeiro a 31 de março de 2024



Fonte: Facebook e Instagram | Elaboração: FGV ECMI

 

A ideia de que o Judiciário exerceria um poder “supremo” que sobreporia-se às demais instâncias democráticas deu o tom geral do debate no Facebook e no Instagram. Essa argumentação partiu sobretudo do campo político alinhado ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que é tido como alvo de alegada perseguição política por parte do Judiciário. Nesse sentido, o discurso de descredibilização e desmoralização das instituições é recorrente. Além da perspectiva de que as eleições presidenciais de 2022 teriam sido fraudadas, alega-se perseguição contínua a aliados e ao próprio Bolsonaro, inclusive com fins de afetar as eleições de 2024.

Decisões de ministros do STF e TSE consideradas autoritárias ou em suposta consonância com uma ideologia de esquerda tiveram espaço relevante na discussão, assim como episódios nos quais essas decisões foram questionadas ou mesmo revogadas. Nesses casos,  esses fatos foram mobilizados de forma celebratória como 

atos de resistência ao alegado “autoritarismo” do Judiciário. Tentou-se impor, ainda, a visão de que os aliados de Bolsonaro estariam mais fortes do que nunca para 2024.

No início de março, o caso da revogação da prisão do deputado estadual Capitão Assumção (ES), que foi detido por ordem do ministro Alexandre de Moraes, motivou os maiores picos de interações em ambas as plataformas. O tom geral era de que, devido à articulação de parlamentares do Espírito Santo, a “justiça” havia sido feita e Moraes, “exposto”. O episódio foi lido como uma vitória não apenas de Assumção ou, indiretamente, de Bolsonaro, mas de todo um campo político, inclusive das possíveis futuras candidaturas alinhadas ao ex-presidente.

É interessante pontuar que temas como punições contra fake news no contexto eleitoral, a limitação do uso de inteligência artificial em campanhas políticas e a regulação das plataformas digitais no cenário das eleições - medidas capitaneadas, em grande medida, pelo Judiciário - também estiveram em evidência, sendo mobilizadas, sobretudo, para endossar a ideia de perseguição a Bolsonaro e aliados. Nesse sentido, episódios como a criação do Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (Ciedd), do TSE, foi classificado como um potencial órgão repressor contra o campo político bolsonarista.

 

Evolução dos temas sobre o Judiciário no X

Período: 1º de janeiro a 31 de de março de 2024

Fonte: X | Elaboração: FGV ECMI

Menções a alegados episódios de censura por parte do Judiciário responderam pela maior parte das postagens entre os temas monitorados, o que indica a preponderância de uma perspectiva de descrédito em relação a este poder e ao processo eleitoral. Sugestões de fraude nas urnas eletrônicas e pedidos pela retomada do voto impresso, temas correlatos à desconfiança eleitoral, tiveram menos espaço no debate, mas não deixaram de ter registros expressivos.

No debate como um todo, a ideia de que o STF e o TSE estariam articulando uma “ditadura jurídica” com práticas de abuso de poder e perseguição política é recorrente. De acordo com essa visão, os tribunais supracitados coordenariam - junto ao governo federal, à Polícia Federal, às Forças Armadas e à mídia tradicional - um suposto conluio contra o campo político alinhado ao ex-presidente Jair Bolsonaro. O ministro Alexandre de Moraes é colocado como mentor intelectual deste conluio. 

Nas postagens sobre censura, alerta-se para supostas práticas que estariam sendo implementadas pelo Judiciário tendo em vista as eleições de 2024. Iniciativas de regulação das plataformas digitais consistem em um dos argumentos mais mobilizados. Afirma-se, por exemplo, que o TSE teria agido para aprovar itens atribuídos ao PL das Fake News de maneira autoritária, sobrepondo-se à deliberação dos demais poderes, e que estaria “terceirizando” práticas de censura para as big techs. Fala-se em ataque à liberdade de expressão e falta de transparência e responsabilidade na aplicação das regras estipuladas pelo TSE. Além disso, os desdobramentos do 8 de Janeiro são evocados como evidência emblemática da suposta censura sistemática praticada contra seguidores do ex-presidente Bolsonaro.

O debate sobre fraude nas urnas, por sua vez, evoca a ideia de que os resultados das eleições de 2022 teriam sido fraudados em prol da esquerda e que isso se repetiria nas eleições de 2024, como forma de prejudicar candidatos alinhados a Bolsonaro. Muitas vezes, associa-se este argumento à questão do voto impresso, que é tratado como a única alternativa de haver um pleito correto e auditável. É interessante pontuar que esta ideia ainda se manifesta de maneira notória e tem aderência importante no âmbito do debate sobre as eleições de 2024, sendo acompanhado de frases de efeito como “sem voto impresso não há democracia”.

Além disso, o caso Choquei/Mynd é evocado como suposta prova de que o Judiciário e a esquerda teriam lançado mão de artifícios escusos para influenciar o resultado eleitoral, enquanto a alteração da filiação partidária de Lula no sistema do TSE via hackeamento é classificada como um sinal da vulnerabilidade do sistema.

Nuvem de termos sobre o Judiciário no  X

Período: 1º de janeiro a 31 de de março de 2024

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Fonte: X | Elaboração: FGV ECMI 

O STF e o ministro Alexandre de Moraes são pontos centrais do debate sobre o Judiciário no X, com protagonismo de perfis alinhados a Jair Bolsonaro, que disseminam uma perspectiva majoritariamente crítica em relação ao Judiciário. Outros ministros tiveram destaque lateral na discussão, como Gilmar Mendes, Carmen Lúcia, Flávio Dino, Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli. Essa tendência aponta para uma personalização dos ataques ao Judiciário, dirigidos a indivíduos específicos, mas sob a premissa em comum de que eles atentariam contra a democracia.

O 8 de Janeiro, pedidos de voto impresso e manifestações contrárias às ações de regulação das plataformas digitais no contexto eleitoral estão entre os termos mais recorrentes do debate, endossando a perspectiva daqueles que atribuem ao Judiciário uma alegada conduta autoritária e ditatorial. Existe ainda uma forte percepção de que uma articulação política da oposição ao governo seria fundamental para impedir que os tribunais conseguissem executar o suposto plano de prejudicar as candidaturas alinhadas a Bolsonaro no próximo pleito. Para fundamentar esta ideia, são evocados argumentos como a suposta tentativa de cassação arbitrária de deputados federais da oposição.

Mensagens sobre o Judiciário nos apps móveis

Período: 1º de janeiro a 31 de de março de 2024

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Fonte: WhatsApp e Telegram | Elaboração: FGV ECMI

A maior parte das mensagens no âmbito da discussão sobre o Judiciário foi proveniente de grupos de direita, com a proeminência daqueles alinhados ao ex-presidente Jair Bolsonaro - tanto no WhatsApp quanto no Telegram. A perspectiva de que o Judiciário encabeçaria um plano para boicotar possíveis eleições de Bolsonaro e aliados, seja em 2022 ou em 2024, é preponderante.

Mensagens potencialmente desinformativas endossam esse posicionamento, como uma suposta denúncia de que o Partido dos Trabalhadores teria ordenado que o TSE cassasse os mandatos de parlamentares da oposição e os tornasse inelegíveis. A resolução do TSE que amplia a responsabilização das plataformas sobre conteúdos desinformativos foi um outro alvo das mensagens, que a classificam como um ataque à liberdade de expressão. Anunciadas tendo em vista as próximas eleições, essas medidas foram comparadas ao chamado “PL da Censura” e classificadas como um exemplo da alegada perseguição a candidatos associados ao ex-presidente.

Para além de supostamente dificultar a eleição de candidatos bolsonaristas, o TSE e órgãos semelhantes são acusados de promover a eleição de candidatos de esquerda, a quem são atribuídos planos de destruir a chamada “família tradicional brasileira”. Nesse sentido, o TSE é acusado de tentar proteger candidatos que apoiariam a sexualização de crianças, por exemplo.

Outras postagens enfatizaram a suposta fragilidade das urnas eletrônicas e do processo eleitoral como um todo, o que teria anuência do STF e do TSE, uma vez que essas instituições teriam um conluio para controlar a política do país.

As menções ao Judiciário no Facebook

Para melhor compreendermos as narrativas adotadas nas menções ao Judiciário, dedicamo-nos, nesta seção, à uma modelagem de tópicos – técnica de mineração de textos para a identificar padrões a partir da co-ocorrência de grupos de palavras. Nesse sentido, foi realizada uma modelagem de tópicos de cerca de 20.556 mil postagens que mencionam o Judiciário, publicadas no primeiro trimestre de 2024 no Facebook. Esta modelagem nos resultou 19 tópicos, ou seja, 19 grupos de palavras com algum padrão de co-ocorrência entre si. Considerando o objetivo deste estudo de compreender as nuances e padrões no debate digital sobre o Judiciário, com ênfase em sua relação com o processo eleitoral, elegemos alguns tópicos a serem destrinchados a seguir, a saber: democracia; confiança nas urnas; uso de Inteligência Artificial nas eleições; atuação do TSE em período de campanha eleitoral; e relação do Judiciário com o Congresso Nacional.

Eixo narrativo sobre democracia no Facebook

Período: 1º de janeiro a 31 de de março de 2024

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Fonte: Facebook | Elaboração: FGV ECMI

A democracia brasileira, com ênfase em sua qualidade e estabilidade, é o tópico mais presente nas menções ao Judiciário no Facebook. Nesse escopo, as ameaças à democracia ganham destaque, com elogios às declarações dos ministros do STF sobre os 60 anos do golpe militar e menções ao 8 de janeiro, enquadrado como parte das tentativas de Jair Bolsonaro contra o processo democrático. O TSE e o STF emergem, nestas publicações, de modo positivo, enquanto instituições que, embora ameaçadas, garantiram a qualidade e a continuidade da democracia nos anos recentes. 

Há, por outro lado, uma investida conservadora que questiona o papel destas instituições, alegando que alguns magistrados, sobretudo Alexandre de Moraes, estariam deturpando e supervalorizando as atribuições do Judiciário – o que, sob este ponto de vista, prejudica a qualidade da democracia. Em alguns casos, circulam afirmações sobre o Brasil vivenciar uma “ditadura do judiciário”, em referência a casos considerados arbitrários, como a prisão do ex-deputado Daniel Silveira, por exemplo. 

Eixo narrativo sobre confiança nas urnas no Facebook

Período: 1º de janeiro a 31 de de março de 2024

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Fonte: Facebook | Elaboração: FGV ECMI

Nesse mesmo escopo, a confiabilidade das urnas eletrônicas é um tópico proeminente nas menções ao Judiciário. Isso explicita como ideias potencialmente danosas, neste caso referentes a questionamentos acerca da confiabilidade do processo eleitoral, compõem o debate digital sobre o Judiciário de modo central. 

Nos posts que conformam esse tópico, prevalece um posicionamento favorável às urnas, com claras tentativas de promover uma campanha positiva sobre o sistema de votação no Brasil. Assim, destacam-se publicações sobre a inspeção do código-fonte e a compra de novas urnas para as eleições municipais de 2024. O TSE, nesse sentido, é um ator central nessa dinâmica, sendo elogiado por sua transparência. Lateralmente e entre os argumentos contrários às urnas, indica-se que se as “maiores potências” do mundo não aderiram ao sistema eletrônico de votação, isso coloca em xeque a confiabilidade desse sistema. 

Eixo narrativo sobre o uso de IA nas eleições no Facebook

Período: 1º de janeiro a 31 de de março de 2024

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Fonte: Facebook | Elaboração: FGV ECMI

Dois dos tópicos em destaque em nossa base dizem respeito ao uso de Inteligência Artificial nas eleições, o que explicita como esse tema, que vem ocupando lugar 

central na agenda do TSE, é relevante também no debate digital. Enquanto o primeiro é mais abrangente, aglutinando discussões sobre o PL das fake news e sobre a regulação do uso de IA nas eleições de 2024, o segundo trata especificamente do dia em que o TSE decidiu por essa regulamentação. 

Diferentemente dos supracitados eixos, esse tópico aparece de modo mais equilibrado entre os campos políticos. Nesse sentido, um lado defende que o TSE defina regras para o uso de IA, mas o outro classifica as tentativas de regulação como “censura”. Esse tópico, vale dizer, acaba estabelecendo relações com outros debates, como aquele relacionado à democracia, na medida em que ao se defender a noção de que o povo estaria sendo censurado, a própria qualidade da democracia é questionada.

 

Eixo narrativo sobre a atuação do TSE no período de campanha eleitoral no Facebook

Período: 1º de janeiro a 31 de de março de 2024

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Fonte: Facebook | Elaboração: FGV ECMI

A atuação do TSE é ainda mais evidenciada no tópico que discute uma série de decisões da instituição no que diz respeito a ações de políticos e partidos em período de campanha eleitoral. A multa aplicada à deputada Carla Zambelli por disseminar fake news durante a campanha é o episódio de maior relevo deste tópico, mas a multa a Bolsonaro por associar Lula ao PCC também repercute com centralidade. Interessante notar como as postagens que conformam esse tópico são majoritariamente favoráveis às decisões do TSE, o que pode indicar que as narrativas positivas sobre o Tribunal compartilham um léxico parecido de palavras e argumentos. 

Eixo narrativo sobre a relação entre o Judiciário e o Congresso Nacional no Facebook

Período: 1º de janeiro a 31 de de março de 2024

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Fonte: Facebook | Elaboração: FGV ECMI

Se os tópicos acima são prioritariamente positivos para a imagem do Judiciário no Brasil, com foco no TSE, o eixo narrativo que trata da relação do Congresso Nacional com o Judiciário é pautado de modo extremamente negativo. Aqui, STF e TSE são considerados partes relevantes de um conluio contra a direita e, sobretudo, contra Jair Bolsonaro, para favorecer Lula. O foco principal reside no entendimento de que essas instituições não respeitam as atribuições do Congresso,

Nesse escopo, sentimentos de anti-petismo e apolitismo se misturam e amplificam o entendimento de que as eleições de 2022 foram fraudadas e que, atualmente, o Brasil vive uma ditadura comandada por Alexandre de Moraes. Ao tentarem deslegitimar a atuação de parte do Judiciário, ideias potencialmente danosas à democracia acabam ganhando capilaridade e contribuindo para um ciclo que estimula cada vez mais desconfiança em relação a essa instância de poder.