Com foco em Covid-19 e dengue, debate sobre saúde é alvo de politização e desinformação nas redes

Por: FGV Comunicação Rio

Por: FGV Comunicação Rio 

Saúde, meio ambiente e segurança pública foram os temas que se destacaram de maneira significativa ao longo do monitoramento de redes sociais desenvolvido pelo projeto Mídia e Democracia, entre dezembro de 2023 e março de 2024. Abordagens de viés desinformativo marcaram parte expressiva das postagens analisadas a respeito desses três temas, que foram abordados majoritariamente a partir de agendas político-partidárias polarizadas, com protagonismo notório da direita. 

Considerando esse panorama, neste estudo destacamos as análises relacionadas à saúde, Com isso, verificamos que a epidemia de dengue, em especial, acionou discursos negacionistas a respeito da vacinação, com paralelo ao que ocorreu com o imunizante de Covid-19, que também voltou a aparecer no debate que promove a desqualificação dos fatos científicos.

Nesse sentido, o documento aqui apresentado foi elaborado a partir da compilação de materiais semanais selecionados para subsidiar a proposição de linhas de ação e para compor um material orientativo para o Conselho do projeto Mídia e Democracia.

Apresentamos esse panorama, inicialmente, com a seção “Linhas de análise: o panorama bimestral”, composta pelos resultados encontrados no debate sobre saúde, em redes como o X, o WhatsApp e o Telegram. Esses resultados, bem como todo o mergulho analítico realizado para a confecção destes estudos, possibilitou o apontamento de possíveis linhas de ação, aglutinadas na seção “Linhas de ação: direcionamentos temáticos”. Por fim, na seção “Restrospectiva”, um panorama das atividades do projeto, entre dezembro de 2023 e março de 2024. 

  1. Linhas de análise: o panorama bimestral

De janeiro a março de 2024, o projeto Mídia e Democracia elaborou uma série de atividades, tais como oito relatórios de monitoramento de mídias sociais e 12 verificações de fact-checking. Nesse escopo, os temas da saúde, da segurança pública e do meio ambiente foram os principais, mas debates específicos sobre o Dia Internacional da Mulher e sobre os paralelos entre as eleições nos Estados Unidos e no Brasil também foram explorados. 

Neste policy paper, focamos em análises sobre a discussão em torno da pasta da saúde, considerando um amplo período temporal, de janeiro de 2023 a fevereiro de 2024, para apontar mudanças e continuidades nesse debate. Além disso, também tensionamos as relações entre a dengue e a Covid-19, comparando discursos, argumentos e eixos desinformativos em torno de ambas as doenças. Embora este seja o foco deste estudo, o panorama bimestral do projeto também conta com outros insumos analíticos, indicando, por exemplo, que o 8 de Janeiro permeou todo o debate de 2023, sendo basilar para as disputas entre os campos políticos. Ou ainda que, dentro do debate de segurança pública, os temas da violência contra a mulher, violência policial e violência urbana ganharam especial ressonância nas redes. 

Em geral, destacamos como pastas relevantes, como a saúde, são recorrentemente instrumentalizadas para fins de disputa política e campanha negativa de um campo contra o outro. Há, nesse sentido, uma certa “repetição” de estratégias discursivas, sobretudo entre atores sociais alinhados à direita e ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Isso ficou explícito, por exemplo, ao tecermos comparações entre mensagens desinformativas sobre a dengue e sobre a Covid-19, com ambas compartilhando um ritual negacionista e conspiratório, com alusão e incentivo a medicamentos cuja eficácia não é comprovada. 

Essa lógica chama atenção para a relevância dos debates sobre desinformação em saúde, ponto crucial e vital, na medida em que afeta, por exemplo, o modo como as pessoas aderem ou recusam as políticas de vacinação. Esse discurso ainda alimenta o que pode ser entendido como uma crise epistêmica, na qual figuras de autoridade, como a ciência, são relegadas a segundo plano e enquadradas como pouco confiáveis. Movimentação similar é mapeada em ataques ao sistema eleitoral e à agenda climática, explicitando uma dinâmica altamente perniciosa ao sistema democrático e, por isso mesmo, urgente de ser estudada. 

1.1 Debate sobre saúde: crise de dengue, Covid-19 e desinformação

No debate sobre saúde, e mais especificamente sobre dengue e Covid-19, circularam eixos desinformativos relacionados à vacinação, a teorias conspiracionistas de “globalismo” e à divulgação de tratamentos não comprovados cientificamente. Também é importante destacar a presença de conteúdos que reivindicam estudos científicos e autoridades da área da ciência para legitimar argumentos falsos sobre a vacinação. Essa atuação foi observada no início da pandemia de Covid-19, em 2020, como apontado pelo estudo da FGV ECMI, e também entre 2023 e 2024, tanto em conteúdos sobre a Covid-19 quanto em mensagens sobre a dengue.

Evolução do debate sobre saúde no X

Período: 1º de janeiro de 2023 a 26 de fevereiro de 2024 

foto

Fonte: X | Elaboração: FGV ECMI

  • Em 2023, o debate sobre saúde no X esteve ligado à Covid-19, mas, a partir de 2024, a Covid-19 passou a dividir espaço com discussões sobre a dengue;
  • Com exceção do primeiro pico de menções, mapeado em janeiro de 2023 e relacionado à crise humanitária do povo Yanomami, os crescimentos mais significativos do debate sobre saúde estão relacionados à Covid-19. Em maio de 2023, por exemplo, o anúncio do fim da pandemia gerou o maior volume/ por dia de todo o debate sobre saúde. A partir de janeiro de 2024, contudo, a Dengue começa a superar a Covid-19, atraindo a atenção do debate público. O foco, até o momento, reside no aumento de casos no Brasil;
  • Embora sejam doenças distintas, as narrativas sobre a Covid-19 e sobre a Dengue são similares, com uma forte politização e com predomínio de discursos conservadores e negacionistas. Assim, circulam atribuições de responsabilidade ao governo Lula tanto no contexto da Covid-19, quanto agora, além de teses conspiratórias que apontam para alegados “planos” da OMS em relação às duas doenças. A vacinação, contudo, é um tópico de separação: enquanto a de Covid-19 é rechaçada e associada a várias mortes; a vacina contra a dengue é demandada ao governo

Principais termos sobre saúde no X

foto

Fonte: X | Elaboração: FGV ECMI 

  • A ministra Nísia Trindade é destaque entre os termos sobre saúde mais mencionados no X em 2023. No primeiro semestre, as críticas estiveram relacionadas a vacinação, legalização do aborto e crise humanitária em território Yanomami. Mensagens de apoio à ministra e críticas a Arthur Lira, após preocupações com a possibilidade da pasta fazer parte da reforma ministerial de Lula, também foram associadas à ministra. Pautas sociais e o combate a desigualdade também apareceram com os anúncios de novos programas do governo no início do ano;
  • No segundo semestre, as críticas à ministra estiveram centradas no debate sobre a vacinação de crianças e inclusão da imunização contra Covid-19 no Plano Nacional de Vacinação (PNI). Nesse sentido, são divulgados possíveis efeitos colaterais e conteúdos desinformativos relacionados à vacinação. Campanhas de conscientização sobre saúde mental e postagens alertando para a disseminação de desinformação sobre a saúde nas redes sociais também estão entre os termos mais mencionados;
  • A epidemia de Dengue é o tema mais mencionado no debate sobre saúde em janeiro e fevereiro de 2024. O Ministério da Saúde é responsabilizado tanto por, supostamente, ter se recusado a comprar vacinas em julho de 2023, quanto por um suposto colapso do sistema de saúde em algumas regiões, como o DF;
  • A obrigatoriedade da vacinação contra Covid-19 para crianças também continua repercutindo no início de 2024, com ênfase na cobrança por evidências científicas que comprovem a eficácia e segurança das vacinas nessa faixa etária. Mensagens conspiratórias afirmando que o Fórum Econômico Mundial está sendo para que elites “mudem o mundo” e conteúdos alarmistas sobre uma suposta Doença X, discutida no Fórum, também aparecem de modo lateral.

Covid-19 e Dengue: nuances e aproximações no debate digital 

Evolução do debate sobre Covid-19 e Dengue no X

Período: 1º de janeiro de 2023 a 26 de fevereiro de 2024 

foto

 

  • A distribuição das menções à Covid-19 e à Dengue ao longo de 2023 e 2024 explicita o predomínio do debate sobre Covid ao longo de 2023 e como este foi superado por picos significativos associados à Dengue entre janeiro e fevereiro de 2024; 
  • No entanto, as características do debate sobre Dengue apontam para menções mais episódicas e muita relacionadas ao atual aumento de casos; o que se difere muito da discussão sobre Covid-19, constante em todo o período – o vírus, nesse sentido, se tornou uma bandeira recorrente em discussões sobre confiabilidade das vacinas, liberdades individuais e investimentos do Estado na saúde pública;
  • Dominados por perfis conservadores, os debates sobre Covid-19 e Dengue se aproximam na medida em que ambos se ancoram em conteúdos negacionistas, conspiratórios e, em alguns casos, desinformativos. Associações negativas entre as doenças e a esquerda também são comuns, com claras tentativas de responsabilizar o governo Lula.

Eixos desinformativos sobre Covid-19 e dengue no Telegram e no WhatsApp

Período: 1º de janeiro de 2023 até 27 de fevereiro de 2024 

foto

Fonte: Telegram e WhatsApp | Elaboração: FGV ECMI

  • Ambos os conteúdos desinformativos, tanto sobre a dengue, quanto sobre a Covid-10, se apoiam em dois pilares centrais: o negacionismo em torno da doença e a noção de que haveria um “plano globalista” por trás da pandemia de Covid e, agora, da epidemia de dengue;
  • É possível vislumbrar, por exemplo, que do mesmo modo em que circulam mensagens, no WhatsApp, que chamam atenção para uma “campanha de matança” da vacina de Covid-19 cujo interesse é “matar 3 bilhões de pessoas em todo o mundo”, em relação à dengue, são mapeadas menções que apontam para experimentos espúrios por trás do aumento de casos da doença, que estaria, propositalmente, se espalhando pelo globo;
  • Em alguns casos, essa relação entre Covid-19 e dengue é posta já na própria mensagem. Neste escopo, destaca-se a noção que ambas as doenças seriam fraudes, na medida em que seus sintomas seriam, sob este ponto de vista, gerados pelo efeito do 5G sobre os seres humanos. Abaixo, dedicamos também um espaço à explicitação dos eixos desinformativos referentes aos tratamentos contra a Covid-19 e contra a dengue, além de mensagens que apontam que a culpa pela epidemia de dengue seria do tratamento vacinal contra a Covid-19; 
  • Menções aos medicamentos Ivermectina e Cloroquina, fortemente relacionados ao tratamento contra a Covid-19, foram mapeadas também como indicativo de tratamento para o combate à dengue. Além da indicação, há outro fator em comum, relacionado à narrativa conspiratória de que haveria um interesse em não divulgar os alegados efeitos dos remédios;
  • Por fim, a noção de que a vacinação contra a Covid-19 seria o que impulsionou o atual aumento dos casos de dengue também ganha muita aderência entre os grupos monitorados, principalmente aqueles voltados a teorias conspiratórias ou mais alinhados à direita. 

2. Linhas de ação: direcionamentos temáticos

Os resultados alcançados evidenciam como o debate digital sobre saúde não apenas repercute o que acontece no cotidiano da sociedade, mas impacta os rumos desse cotidiano, afetando, por exemplo, a crença da população em medicamentos e vacinas. Os picos desse debate ao longo de 2023 e no primeiro trimestre de 2024 apontam que a Covid-19 e a dengue foram os tópicos que mais motivaram a participação dos indivíduos na discussão sobre saúde online, mas o aborto, a crise humanitária em território Yanomami e as questões em torno da saúde mental também estiveram em evidência, embora de modo mais lateral. 

Em ambos os casos, há uma forte tendência de politização desses debates, fazendo com que a pasta da saúde seja mobilizada como instrumento e ferramenta de confronto e disputa entre os campos políticos. Nesse escopo, a desinformação sobre saúde emerge como uma constante estratégia que, ao potencializar medos e sentimentos de urgência, pode afetar a percepção da população não apenas sobre uma vacina em específico, mas sobre a ciência como um todo. 

Tendo isso em vista, urge a necessidade da confecção e do estabelecimento de direcionamentos e linhas de ação que, seja a médio ou longo prazo, possam contribuir com o enfrentamento desta questão, melhorando a qualidade do debate digital sobre saúde no Brasil. O projeto Mídia e Democracia, junto aos resultados deste ciclo bimestral, contribui no sentido de fornecer subsídios analíticos e informacionais para a confecção destes tópicos. 

2.1 Políticas públicas

2.1.1 Promover e melhorar as estratégias de comunicação voltadas à difusão de informações sobre saúde, estabelecendo canais mais diretos entre cidadãos e governos, para combater eixos desinformativos e responder a boatos diversos;

2.1.2 Estabelecer e aprimorar um conjunto de legislações e medidas que desestimulem a produção e disseminação de fake news e outras fraudes relacionadas à saúde.

2.2 Empresas de plataformas digitais

2.2.1 Possibilitar a criação de uma estrutura que, além de combater conteúdos desinformativos, restringindo sua circulação e notificando responsáveis, possa prever campanhas articuladas, mapeando estratégias discursivas; 

2.2.2 Reforçar as políticas de transparência em torno do combate à desinformação sobre saúde, disponibilizando dados e realizando parcerias com a comunidade acadêmica. 

2.3 Produção de evidências científicas

2.3.1 Fortalecer processos e dinâmicas de divulgação científica em torno da saúde, chamando atenção para a aplicabilidade desses debates e estudos na vida da população, investindo em estratégias que confiram uma maior proximidade entre estes avanços e os cidadãos em geral; 

2.3.2 Fornecer insumos analíticos que possibilitem uma compreensão mais ampla e detalhada de como a desinformação sobre saúde é acionada para fins político-eleitorais, sobretudo, em períodos de eleição nacional ou municipal.

3. Retrospectiva

Monitoramento

Em janeiro, fevereiro e março, foram produzidos oito relatórios semanais. Para além da epidemia de dengue, que motivou relatórios específicos e uma série de checagens de fatos, o projeto se debruçou sobre as temáticas da segurança pública e meio ambiente. Desdobramentos dos ataques do 8 de Janeiro na efeméride de um ano do episódio foram destaque no período. Todos os monitoramentos e atividades do projeto podem ser acompanhadas pelo site.

A politização da pauta da segurança pública ao longo de 2023 e no início de 2024 e questões ambientais, como a discussão em torno do racismo ambiental a partir de fala da ministra Anielle Franco, foram temas proeminentes. No âmbito do debate ambiental, a pauta indígena foi explorada a partir de novos desdobramentos da crise Yanomami, deflagrada no ano anterior.

Entre os outros destaques do monitoramento do período, estiveram a fuga de detentos da prisão federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, que mobilizou de maneira expressiva o debate sobre segurança pública no atual governo, e denúncias de exploração sexual de crianças na Ilha de Marajó, no Pará.

Fact-Checking

A partir do monitoramento de redes sociais, a Agência Lupa realizou 12 verificações de conteúdos desinformativos em circulação nas plataformas. Falsas informações sobre componentes da vacina contra a dengue e a divulgação de tratamentos caseiros sem eficácia comprovada para esta doença estiveram em destaque entre as verificações desenvolvidas no período.

Sobre esse tema, podemos destacar: É falso que vacinas da Covid foram destruídas na Rússia e suspensas por 21 países; Suco de limão e caldo de cana não têm eficácia no tratamento da dengue; Repelente caseiro com cravo-da-índia, álcool e óleo corporal não tem eficácia contra dengue; e Fakes sobre dengue repetem narrativa mentirosa da pandemia de COVID-19.